RR_Desamparo_Revista-SPPA-v19-n2-2012
O desamparo e as tentativas de solução para o traumatismo primário
O desamparo e as tentativas de solução para o traumatismo primário
René Roussillon*, Paris
O autor propõe um modelo do traumatismo primário baseado num estado de desamparo primário que gera uma agonia psíquica. Explora, a seguir, as consequências posteriores das defesas e as diversas “soluções” não simbólicas instauradas para tentar bloquear o retorno desse desamparo. Essas diversas soluções dão conta de uma grande parte dos quadros observáveis nas patologias do narcisismo.
Descritores: Desamparo. Agonia. Simbolização. Clivagem. Inversão. Primário.
* Psicanalista membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Paris.
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Neste artigo eu gostaria de analisar o estado de desamparo relacionado com um tipo particular de traumatismo que proponho designar por traumatismo primário. Como pretendo desenvolver mais adiante, o traumatismo primário, devido ao estado de desamparo e ao sofrimento psíquico que o acompanham, torna a experiência subjetiva traumática não integrável na subjetividade. Ela é então clivada, mas sempre ameaça retornar com maior ou menor intensidade, o que compele o eu a recorrer a soluções complementares para manter a clivagem primária. As diversas tentativas de solução então aplicadas contra o retorno da experiência clivada organizam as diferentes formas dos quadros clínicos dos sofrimentos narcísico-identitários, ou seja, dos sofrimentos narcísicos que têm consequências para o sentimento de identidade do sujeito.
Mas antes de descrever o desamparo relacionado com o traumatismo primário, eu gostaria de relembrar o modelo do traumatismo secundário tal como pode ser reconstruído a partir da contribuição freudiana.
O modelo do recalque e do traumatismo secundário
Antes de apresentar o modelo do traumatismo primário – que, como veremos, é um desenvolvimento do modelo do traumatismo de 1920 de Freud – e de abordar a questão de seus efeitos intrapsíquicos e intersubjetivos, é necessário, para mostrar sua diferença, lembrar o esquema implícito da neurose em relação ao traumatismo secundário tal como ele pode ser extraído das primeiras elaborações freudianas.
O modelo da neurose repousa na hipótese de que a psique, submetida a um conflito entre movimentos pulsionais e subjetivos, recalca um dos termos do conflito psíquico para tentar tratar o desprazer gerado pela acuidade do conflito. Desse modo, uma experiência de satisfação pulsional entra em conflito com a subjetividade, ou pelo seu excesso – ameaça de transbordamento da psique –, que torna difícil a sua integração, ou devido a sua incompatibilidade com as exigências superegoicas, ou certos aspectos da realidade externa que tais exigências aportam.
O conflito atual entra em ressonância com um conflito histórico – proveniente da sexualidade infantil –, que, na época, devido a uma conjuntura traumática, só pôde ser solucionado pelo recalque. O traumatismo histórico foi recalcado e, com ele, as representações de desejo que nele estavam implicadas. Por isso este traumatismo pode ser dito secundário: a situação subjetiva foi vivida, representada e depois secundariamente recalcada por causa do conflito. No entanto,
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o recalque deu origem a uma fixação, que subtraiu da evolução as moções pulsionais comprometidas. Esse ponto de fixação provoca um arcaísmo que atrai os conflitos atuais correspondentes, provocando, por sua vez, um recalque secundário dos conflitos atuais.
O eu continua a escolher não escolher, recalcando certos termos do conflito atual, o que garante uma possibilidade de satisfação inconsciente – esta é a realização alucinatória que caracteriza os processos primários – às moções pulsionais recalcadas. No entanto, o recalcado, submetido às modalidades de satisfação inconscientes, se mantém ativo e ameaça a subjetividade de um retorno invasor das moções pulsionais recalcadas, tanto das representações reminiscentes do conflito anterior quanto da conjuntura traumática que organizou o recalque primário.
O desejo ou o movimento pulsional, representado como realizado na fantasia inconsciente, ameaça a integridade do sujeito, que fica então exposto a uma das formas da angústia de castração. Assim ameaçado, o eu precisa, pois, organizar- se contra o retorno do recalcado e organizar modalidades de compromisso ante o conflito atual que o opõe a esse retorno. São as defesas então criadas e o tipo de satisfações substitutivas que podem ser instauradas pelo eu que caracterizam o quadro clínico do estado neurótico ou, se o sujeito estiver em análise, a conjuntura transferencial.
No curso da análise, o desejo inconsciente e recalcado é ativado pela transferência e pelo dispositivo psicanalítico, seus derivados infiltram-se nas cadeias associativas, que trazem então formas metaforizadas desses derivados. É a partir dessa metaforização, dos deslocamentos que ela produz, que a interpretação busca um meio de possibilitar uma reintegração secundária do recalcado, a fim de permitir que se manifestem, na transferência, os seus aspectos atuais e históricos em jogo e que apareçam as características do contexto infantil dos primeiros recalques. De acordo com o esquema clássico, a neurose clínica, transformada pela análise em neurose de transferência, permite elaborar a neurose infantil.
Todavia, tal modelo só é pertinente se certas condições forem preenchidas. Estas condições foram aos poucos destacadas, justamente a partir da verificação de sua falta em outras conjunturas clínicas.
Por um lado, o trabalho de simbolização primária, aquele que torna possível uma realização alucinatória inconsciente do desejo, já foi realizado. O processo todo se desenrola no espaço representativo, do início ao fim, os agieren concernem apenas ao efeito das representações inconscientes agidas na transferência devido à tendência à realização alucinatória do desejo. As representações são transformadas em ato pela atualização alucinatória, mas são ou foram constituídas
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como representações de coisa. É outro modo de dizer que o processo se desenrola sob a égide ou a dominação do princípio do prazer/desprazer e que a dificuldade não é senão a de sua transformação em princípio de realidade.
O narcisismo permanece suficientemente bom, permite a organização de uma ilusão que possibilita a transferência, sob o primado do princípio de prazer, tornando concebível, assim, um trabalho de luto, fragmento por fragmento, das realizações de desejos infantis trazidas à tona pelo trabalho psicanalítico. Num tal esquema, o processo do tratamento “melhora” o narcisismo e o funcionamento psíquico do paciente, que se beneficia com isso, mesmo nos momentos negativos de transferência, pelo levantamento progressivo dos recalques.
Esse modelo, que cria uma dialética entre recalque, retorno representativo do recalcado e defesas anexas contra o retorno do recalcado, teve sua comprovação na análise dos elementos narcísicos dos estados neuróticos, mas não pode explicar a totalidade dos sofrimentos narcísicos.
Certas partes da vida psíquica não são recalcáveis porque não estão integradas na subjetividade. É necessário dispor de outro termo, a clivagem, para descrever sua situação tópica em relação ao eu. Essas experiências psíquicas “inconscientes”, apesar de não recalcadas, e incapazes de se tornarem conscientes dessa forma (Freud, 1923), afetam o narcisismo e a relação com a falta de uma maneira completamente diferente daquilo que é representado e recalcado; dão origem ao que eu designo por sofrimentos narcísico-identitários, aqueles que se caracterizam mais pela falta de ser do que pela falta no ser. Sua presença nos refúgios do funcionamento psíquico faz com que este sofra uma série de inflexões que modificam o curso dos processos transferenciais e o regime da escuta psicanalítica. É isto que tentaremos descrever aqui a partir do impacto causado sobre a situação psicanalítica.
A transferência paradoxal e o quadro clínico das conjunturas transferenciais narcísicas
Nos movimentos transferenciais oriundos de um funcionamento psíquico em que predomina a dialética recalque/retorno representativo do recalcado, o analisando tenta mostrar, por metáfora ou deslocamento, aquilo que dele mesmo ele não entende, mas sente confusamente, aquilo que se manifesta nele, disfarçado, sem tomada de consciência. Ele vem mostrar através da linguagem, para fazer com que seja entendido, aquilo que ele não consegue aceitar de si mesmo, ainda que “saiba” ou “sinta” a presença interna disso. Eis o sentido do inconsciente na
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acepção do recalque. “Saber” sem saber que se sabe, fazer com que se entenda aquilo que se sente, mas não se entende de si mesmo.
Nas conjunturas de transferência narcísica, o quadro clínico desvia-se em direção a uma forma paradoxal dessa dialética intersubjetiva. O analisando vem fazer com que se sinta ou veja uma parte dele que ele mesmo não percebe diretamente, não sente ou não vê, mas cujos efeitos indiretos sobre os outros ou sobre si mesmo ele consegue avaliar. Ele “solicita” que o analista seja o que podemos chamar de espelho do negativo de si mesmo, daquilo que não foi sentido, visto ou ouvido de si mesmo, ou foi mal sentido, mal visto ou mal ouvido, o espelho daquilo que, portador de um estado de desamparo primário e de um sofrimento intolerável, ameaça a integridade do eu.
À transferência por deslocamento, que caracteriza as formas da neurose de transferência, substitui-se ou soma-se, então, uma forma de transferência por inversão, em que o sujeito, paralelamente, mas clivado de possibilidades de integração, faz com que o analista viva aquilo que o primeiro não pôde viver em sua história1.
Esse primeiro paradoxo da transferência de fazer com que o outro sinta aquilo que o sujeito não sente, não sofre em si mesmo, gera uma série de outras formações paradoxais, uma série de outras inflexões da transferência nas quais o paradoxo tende a substituir o conflito psíquico subjetivamente percebido2. No mesmo movimento, percepção e sensação substituem também as representações simbólicas, e aquilo que se apresenta como realidade, como objetividade, se impõe à representação fantasmática subjetiva.
No prolongamento desse primeiro desvio das cadeias associativas, delineia- se um mundo muito mais dominado pela coação (dupla ou múltipla coação paradoxal) do que pelas lógicas da escolha, ainda que seja a do direito à escolha de não escolher. Essas coações geram situações de impasse nas quais nenhum compromisso parece satisfatório, sequer concebível.
Defrontando-se com essas situações de impasse, o sujeito reage mais pelo desamparo, pelo desespero ou pelo recuo do que por um processo de renúncia ou luto. O desamparo surge quando não há escolha possível, quando não há saída e o sujeito se encontra num impasse. A questão, portanto, é mais do não advindo em
1 Tal processo não deixa de estar relacionado com o que M. Klein (1950) denomina identificação projetiva, mas, além disso, faz um vínculo entre a situação histórica do sujeito quando houve o que ele não pôde integrar e o momento atual.
2 Foi o que desenvolvi particularmente em Paradoxes et situations limites de la psychanalyse (1991).
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si3 do que da perda, o paradoxo do processo de luto sendo assim o confronto do sujeito com o fato de ter de renunciar mais ao que não pôde ser seu do que àquilo que foi e ficou perdido.
Isso quer dizer que o universo transferencial fica mais sob a dominação das problemáticas da negatividade do que daquelas da integração e da ligação. No mesmo movimento, a destrutividade, ou certas formas da pulsão de morte, ocupa o terreno no lugar da libido, e a relação com o objeto aparece então interpretável como estando mais subordinada à questão do uso do objeto (Winnicott, 1971; Roussillon, 1991) do que à questão mais clássica da relação de objeto. O que aí está em jogo encontra e enfrenta a questão do narcisismo dos objetos referenciais do sujeito, aos quais ele teve de submeter sua identidade e suas tentativas de subjetivação. O ideal do eu ultrapassou largamente a questão da regulação superegoica.
Por fim, last but not least, a compulsão à repetição suplanta o princípio de prazer-desprazer. Um breve exemplo clínico extraído do tratamento de uma paciente a quem chamarei de Noire permitirá compreender melhor como se formam as coerções do espaço subjetivo nas conjunturas transferenciais que procuro abordar aqui.
Para tentar explicar as condições subjetivas da relação com o seu objeto primário, Noire imagina uma variante próxima da alternativa do filme e do livro A escolha de Sofia. Neste filme, é encenada a alternativa diante da qual uma mãe é colocada por um carrasco: para sair do campo de concentração e assim garantir a sua sobrevivência, esta mãe deve aceitar “escolher” salvar um de seus dois filhos, sacrificando, portanto, o outro. Tem-se aí uma posição limítrofe da escolha, na medida em que não se pode conceber uma saída realmente satisfatória para uma alternativa como essa. Mesmo sendo uma posição limítrofe da escolha, ela é viável na medida em que a aceitação do sacrifício de um dos dois filhos permite, apesar de tudo, salvar o outro e salvar-se a si mesma. O princípio do prazer- desprazer, subjacente à própria possibilidade de uma escolha, pode mesmo assim conseguir inscrever aí sua marca.
Na variante imaginada por Noire para explicar os impasses de sua relação com a mãe, uma vez feita a “escolha” da mãe na presença de seus dois filhos, o carrasco decide salvar a criança que a mãe escolheu sacrificar, matando então aquela que ela havia decidido salvar. A criança sacrificada pela mãe, aquela que ela escolheu matar, sobreviverá, encontrando no olhar dela o traço dos efeitos subjetivos de sua escolha.
3 O não advindo em si refere-se àquilo que permanece em estado potencial na psique, àquilo que não encontra matéria para poder inscrever-se na simbolização e, portanto, no eu-sujeito.
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Na história real de Noire, não há carrasco, e foi dentro da mãe que a “escolha” foi encontrada em decorrência de uma grave doença infecciosa que afetou as duas meninas da família. Noire, a segunda, a mais frágil, a que menos dava satisfação à mãe, foi a única a sobreviver, apesar do desejo materno de que a outra, a mais velha, a mais investida, sobrevivesse. Mais tarde, Noire devia ouvir da boca de sua mãe como esta última havia desejado que a mais velha das duas irmãs sobrevivesse se fosse preciso escolher entre as duas. Ou melhor, ela ouviu da mãe que, diante da morte da mais velha, a mãe desejou, antes, que fosse ela, a segunda, que sucumbisse.
A relação entre mãe e filha sobrevivente não resistiu a essa prova, e Noire teve de crescer assombrada pela presença fantasmagórica da irmã “escolhida” no coração da mãe, com todas as dificuldades imaginadas quanto à possibilidade de se tornar a heroína de sua história. Ao desamparo agonizante ligado à grave doença infantil se mesclaram, nela, o efeito causado na mãe pelo luto impossível da mais velha, o ódio e a inveja manifestados contra a sobrevivente.
Obviamente, a história clínica de Noire foi muito mais complexa do que mostra essa simples vinheta, mas talvez seja o suficiente para cumprir o propósito de começar a fazer com que se percebam os parâmetros subjetivos do impasse narcísico para o qual chamo atenção aqui e suas relações com a questão do traumatismo primário e do desamparo, dos quais devemos agora voltar a nos ocupar demoradamente.
O traumatismo primário e a experiência agonizante
De fato, a perlaboração clínica do quadro transferencial que descrevemos anteriormente leva geralmente a evidenciar um tipo de experiência subjetiva proveniente de uma conjuntura traumática primária que exerce seus efeitos sobre todo o quadro clínico. Eu gostaria de tentar agora propor um modelo dos tempos e das características do que sugiro chamar de traumatismo primário, diferenciando- o do traumatismo secundário, que, por sua vez, não afeta a integração da experiência senão secundariamente. Como tentarei mostrar, o traumatismo primário afeta a organização dos processos e da simbolização primária.
Em 1920, Freud propõe uma teoria do traumatismo resultante da efração do pára-excitações por um excesso de excitação. Winnicott (1969) acrescenta a ideia de uma experiência subjetiva em três tempos, X+Y+Z, que só progressivamente se torna traumática em função da aleatoriedade das respostas ou da ausência de respostas provenientes do meio ambiente. Esse esboço, desde
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que seja contextualizado e considerado numa dialética com os movimentos complementares dos objetos, fornece uma base para se pensar a noção de traumatismo primário no seu desenvolvimento e em suas diferentes particularidades.
O modelo que proponho adapta-se especialmente bem aos traumatismos precoces ou muito precoces, mas também vale para toda e qualquer experiência de transbordamento e de desamparo ante um transbordamento, inclusive para as que afetam o aparelho psíquico numa idade mais tardia. Retomo a ideia de três tempos proposta por Winnicott (1969), a qual permite pensar como a situação inicial, que é apenas potencialmente traumática, acaba por se tornar traumática se o entorno não oferecer resposta adequada.
No primeiro tempo (X), precisamos conceber o aparelho psíquico como sendo ameaçado por um afluxo de excitação capaz de provocar um transbordamento, ou por causa da imaturidade de seus meios, ou pela intensidade das quantidades envolvidas, ou ainda pelo caráter enigmático das impressões que o assaltam. Sob essa ameaça, a psique doa seus recursos internos disponíveis para tentar ligar ou evacuar o afluxo de quantidade. Conforme a idade ou o grau de maturidade da psique, pode-se conceber tentativas de ligação ou de descarga com o auxílio da satisfação alucinatória do desejo, dos autoerotismos ou ainda com o auxílio do exercício do campo motor, da destrutividade, etc.
A característica fundamental do tempo X é o fato de os recursos internos e auto se esgotarem e fracassarem – seja por causa da insatisfação dos autoerotismos infantis ou da solução alucinatória, seja por causa do fracasso das capacidades de ligação ou de descarga de modo geral. É este fracasso que leva ao tempo seguinte, o tempo X+Y.
O esgotamento das tentativas de solução interna, o fracasso dos recursos internos do sujeito, desencadeia um estado de desamparo primário que é um estado de tensão e de desprazer intenso, sem saída interna, sem fim nem representação.
Duas situações se apresentam. Se o estado de desamparo primário vier acompanhado por traços mnésicos de experiências de satisfação em relação a um objeto, ele se torna então um estado de falta, ou seja, um estado de esperança em relação à representação de um objeto de recurso. Se o objeto de recurso sobreviver ao desamparo e à falta, isto é, se ele fornecer em tempo a resposta4 que apazigua o estado de tensão, esta resposta do objeto fornece a base de um contrato narcísico5
4 Isso exigiria um longo comentário sobre a satisfação e as respostas “satisfatórias” do objeto. Para uma primeira abordagem, cf. R Roussillon 1997a.
5 Tomo emprestado este termo de P. Aulagnier (1975), embora eu lhe atribua um sentido levemente diferente.
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com o objeto. Conforme este contrato, o objeto será investido como objeto da falta se ele assegurar, por sua presença, um paliativo para os estados de desamparo. O objeto será amado por sua presença, faltará em sua ausência e será odiado por isso, sendo, portanto, o objeto de um conflito de ambivalência. O contrato narcísico assegura a base de um processo de socialização fundado no reconhecimento da falta do outro e, depois, da falta do outro no outro, sendo gerador de relação de objeto e de sua organização triangulada.
A outra face do contrato narcísico é aquela do preço a pagar para assegurar- se do recurso ao objeto em caso de necessidade. O preço mínimo a pagar é a aceitação de certa dependência e o testemunho do conflito de ambivalência que a acompanha inevitavelmente, que asseguram o preço do objeto e a ligação mantida com ele mesmo em sua ausência. Mas os objetos podem exigir mais do sujeito para a manutenção da base do contrato narcísico, podem atrelar o seu recurso e o seu “amor” – ou, às vezes, o próprio investimento – a uma série de condições, as quais passam então a fazer parte do preço a pagar para a manutenção do reconhecimento narcísico implícito ao contrato6. Não cabe a esta tentativa de elaboração de um modelo detalhar as diferentes conjunturas que podem apresentar- se, embora elas tenham uma notável importância clínica e gerem uma série de patologias do narcisismo na condição de ser que instauram.
As alianças patológicas que então se estabelecem com o objeto podem ser consideradas a base das organizações que Winnicott (1970b) chama de falso self. Mas o preço a pagar pode ser tão alienante, que ameaça a própria existência de um contrato narcísico possível, que não consegue instaurar-se ou só consegue fazê-lo muito parcialmente. Vejamos agora o outro lado da alternativa, aquele que diz respeito ao fracasso da instauração do contrato narcísico.
Se o objeto não se apresentar, ou se a resposta que ele fornecer à necessidade e ao desamparo do sujeito for muito insatisfatória, ou então se o preço a pagar para a obtenção de um recurso dele exceder as capacidades do sujeito, o estado de falta se degrada sob o efeito da raiva impotente que ele mobiliza; passa-se então ao tempo X+Y+Z.
O estado de desamparo primário e de falta do objeto dura um tempo Z, além do suportável. O estado de falta se agrava, degenera-se num estado traumático primário. Se o sofrimento psíquico passar ao primeiro plano, ele gera um estado de agonia (Winnicott, 1969). Se aí se misturar terror ligado à intensidade pulsional, ele produz um terror agonizante ou um terror sem nome (Bion, 1957).
6 As dificuldades na organização da transicionalidade resultam muitas vezes do preço dessas exigências narcísicas dos objetos.
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Esses estados traumáticos primários possuem certas características que os especificam. Como os estados de desamparo primário, são experiências de tensão e desprazer sem representação (o que não quer dizer sem percepção nem sem sensação), sem saída, isto é, sem recurso interno (estes se esgotaram) nem recurso externo (estes falharam), estados que vão além da falta e da esperança. Esses estados encontram, portanto, um impasse subjetivo, provocam um estado de desespero existencial7, uma vergonha de ser, que ameaçam a própria existência da subjetividade e da organização psíquica. O sujeito se sente “culpado” (culpa primária pré-ambivalente) e responsável por não ter podido enfrentar aquilo que confrontou, correndo o risco de “morrer de vergonha” diante da constatação da ferida narcísico-identitária primária que a situação traumática lhe inflige. A subjetividade defronta-se com aquilo que eu proponho chamar, na esteira de Bruno Bettelheim (1967), uma situação extrema da subjetividade.
A clivagem no eu
A única saída para essa situação de impasse é paradoxal. Para sobreviver, o sujeito retira-se da experiência traumática primária e do estado de desamparo vivenciado e, ao se retirar, aparta-se da sua subjetividade. Garante a sua sobrevivência psíquica – eis o paradoxo – apartando-se da sua vida psíquica subjetiva. Não sente mais o estado traumático, não sente mais o desamparo, não se sente mais no lugar onde está, descentra-se de si mesmo, afasta-se de sua experiência subjetiva8.
Na linha do que propõe Freud (1938) no Esboço de psicanálise ou no final de Construções em análise (Freud, 1937a), parece-me oportuno identificar nesse processo de retirada para fora de si uma forma de clivagem do eu. Só este conceito permite respeitar o paradoxo de uma defesa que opera por corte ou recuo da subjetividade e não somente por recuo ou subtração da representação ou recalque do afeto.
O aspecto paradoxal dessa defesa extrema se deve ao fato de que o eu se cliva de uma experiência vivenciada e, ao mesmo tempo, não constituída como experiência do eu, o que pressuporia que ela pudesse ter sido simbolizada. De um lado, a experiência foi vivenciada, deixando, portanto, traços mnésicos de sua
7 Que pode ser aproximado da depressão essencial descrita pelos psicossomatistas ou de certas formas de melancolia ou de depressão existencial.
8 Devemos a S. Ferenczi (1927-1933) a primeira observação clínica acerca deste mecanismo.
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vivência,e,deoutro,elanãofoivivenciadademaneirasimbolizada9 eapropriada como tal, na medida em que, como diz Winnicott (1970a), não foi posta no presente do eu, o que pressuporia que tivesse sido simbolicamente representada.
Diferentemente da clivagem referida por Freud (1937b) em A clivagem do eu no processo de defesa, artigo que descreve a ruptura de um eu cindido entre duas cadeias representativas incompatíveis entre si, a clivagem que descrevemos divide a subjetividade entre uma parte integrada e uma parte não integrada, sendo mais uma clivagem no eu do que uma clivagem do eu. No entanto, é uma clivagem da subjetividade, mesmo que a parte não integrada seja psíquica e subjetiva e, como tal, deva pertencer ao eu.
Por outro lado, parece-me importante pensar um modelo conjunto do sofrimento narcísico-identitário e do desamparo primário e subsumir as formas deste sob a égide de um processo único: a clivagem. Aliás, isso segue a evolução do conceito proposto por Freud (1939) já no ano seguinte ao Esboço, no qual ele faz da clivagem o processo organizador das falhas do narcisismo.
Todavia, nossa análise anterior descreve um processo de defesa e não uma organização psíquica como são as patologias do narcisismo; para passar de um caso ao outro, precisamos considerar hipóteses complementares que permitam perfazer nossa representação das patologias narcísico-identitárias. No estágio da nossa descrição, ainda não chegamos a uma estruturação da defesa narcísica, somente a uma primeira medida de sobrevivência psíquica.
O problema da ligação primária não simbólica
Para completar o nosso modelo geral e o quadro que propomos, precisamos ter em mente que o fato de apartar-se dos traços da experiência traumática primária não faz com que esta desapareça. Só a faz desaparecer na subjetividade consciente, mas não na subjetividade inconsciente no sentido da clivagem, que conserva o seu traço.
Os traços da experiência traumática primária estão para além do princípio do prazer-desprazer. É a defesa que está sob o primado do princípio do prazer que a representa, enquanto os traços perceptivos, em contrapartida, são submetidos à compulsão à repetição. Isso significa que esses traços vão regularmente ser
9 Neste caso, a simbolização diz respeito ao processo de representação através do qual o eu pode apropriar-se da experiência subjetiva, diferentemente da simples representação perceptiva, que se contenta em registrar a experiência.
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reativados sob a pressão desta, vão, portanto, tender a ser constantemente reinvestidos de maneira alucinatória.
O seu reinvestimento ameaça a subjetividade e o eu de um retorno da experiência traumática e do estado de desamparo primário, ou mesmo da agonia que o caracteriza: o clivado tende também a retornar. E, na medida em que o clivado não é de natureza representativa, o retorno do clivado também não é de natureza representativa, podendo manifestar em ato os seus efeitos, isto é, podendo reproduzir o próprio estado traumático.
A clivagem, portanto, não basta; faz-se necessário repeti-la ou organizar defesas contra o retorno do estado traumático anterior10. São as defesas complementares exercidas pela psique para tentar ligar e bloquear de maneira estável o retorno do clivado que vão caracterizar o quadro clínico das defesas narcísicas e as diferentes formas das patologias narcísico-identitárias.
A primeira modalidade a ser concebida é a de uma tentativa de retorno ao estado anterior X+Y, aquele em que um contrato narcísico alienante ainda pode se estabelecer com o objeto. Diante da ameaça de catástrofe psíquica que a recusa das condições alienantes por parte do sujeito lhe impõe, este procede a uma rendição secundária às condições de um contrato narcísico com o objeto. Antes isto, por mais alienante que seja, que o confronto com as angústias sem nome do estado agonizante, que a radical não atribuição com a qual se defronta, que um estado de desamparo e luta sem fim e sem saída. Para manter ou estabelecer um vínculo com o objeto, o sujeito aceita passar pelas forças caudinas11 do objeto para manter a aliança com este, aceita ter uma parte de si mesmo amputada, a qual fica então em suspenso, vagando na psique, não advinda para si. Certas formas de masoquismo (cf. o contrato da Vênus das peles, de Sacher-Masoch, 1967), certos pactos denegativos (R. Kaës, 1989), certas formas de relações incestuosas (Racamier, 1995) se estabelecem, então, baseados na escolha do objeto, por mais insatisfatório e alienante que seja este, em vez do retorno da agonia. Nesta base, certa simbolização pode desenvolver-se, mas a zona afetada pela proximidade da zona traumática permanecerá relativamente rígida e fixada, sempre potencialmente ameaçada por um retorno da agonia no momento em que houver uma separação do objeto, no momento em que as condições do pacto com o objeto estiverem em perigo.
10 O estado traumático anterior retorna com as principais características do seu momento de emergência; quando se repete, ele repete também o seu caráter traumático, o fracasso da simbolização histórica.
11 N.T.: No original em francês, fourches caudines. Traduz-se esta expressão em português por forças caudinas. Diz-se das forcas ou dos desfiladeiros por onde os samnitas fizeram passar as legiões romanas. Em sentido figurado, significa submeter a uma humilhação.
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Precisamos também examinar a hipótese de uma simbolização secundária après coup das agonias primárias. Com efeito, não podemos excluir – e a clínica confirma isto – que a experiência traumática primária tenha vindo secundariamente produzir infiltrações alucinatórias nas experiências posteriores, com as quais viria assim misturar-se, ligar-se e intricar-se, ou até mesmo, graças a esta intricação, simbolizar-se. A resistência ao trabalho psicanalítico e à retirada do recalque de certos sintomas neuróticos indica seguidamente que eles drenam problemáticas de outra natureza.
Um recalque pode mascarar uma clivagem, mas o inverso também pode acontecer e uma clivagem anterior pode contribuir para o recalque. O trabalho psicanalítico nos habituou, de fato, a conceber uma psique estratificada, onde encontramos camadas sucessivas de defesas nas quais se mesclam experiências psíquicas de diferentes idades e diferentes naturezas. É até mesmo provável que a intricação e a retomada secundária das características das agonias primárias sejam frequentes, como indica bem a intensidade de certas formas de resistência à integração da falta e à elaboração da angústia de castração12.
Todavia, a experiência clínica mostra igualmente que, em certos casos, não houve trabalho de retomada après coup da experiência traumática primária e que esta permaneceu clivada dos processos integradores. Muito mais que o recalque, a clivagem provoca fueros (Freud, 1896), espécies de extraterritorialidades utópicas ou atópicas que parecem atravessar as idades sem serem remanejadas pelas experiências posteriores, constituindo, aliás, a característica principal dos estados clivados da psique.
Como entender que o trabalho psicanalítico possa resgatar traços dessas agonias primárias que não foram, ou foram muito pouco, remanejadas pela história? Esta questão sobrepõe-se àquela do modo como a experiência traumática foi ligada de maneira não simbólica, aproximando-se muito de suas modalidades de registro histórico.
Dissemos que são as modalidades de ligação primária não simbólica que melhor especificam os quadros clínicos das patologias narcísico-identitárias, e é a partir de suas diferentes modalidades que devem ser descritos os destinos do retorno do clivado. Para se opor ao retorno do clivado, essas organizações são soluções solipsistas em seu próprio fundamento, mesmo que possam acomodar- se com aportes dos objetos e aparentam-se ao que M. Khan (1976), seguindo Winnicott, chama de autotratamentos, ou seja, soluções que não provêm diretamente de uma forma de interiorização simbolizante da experiência subjetiva,
12 Sobre este assunto, cf. R Roussillon 1997b.
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mas mostram, ao contrário, que o sujeito tenta “tratar” aquilo com que se deparou sem passar pelo processo oneroso da simbolização e dos lutos que esta inevitavelmente gera. Também não são modalidades autoeróticas propriamente ditas, que não podem ser concebidas senão como uma forma de comércio interno com o objeto na ordem representativa; aparentam-se antes a formas de autossensualidade, tal como são descritas pelos autores anglo-saxões, ou ainda aos processos autocalmantes (M. Fain, 1982).
O empobrecimento do eu, já observado por Freud em relação ao traumatismo de 1920, apresenta-se como uma característica geral desses diferentes quadros clínicos; é por ele que precisamos começar nosso percurso. Ele está sempre presente, mesmo que não seja sempre manifesto, devido à amputação a que a clivagem submete o ser. Porém, junto com a falta de ser assim implicada, o empobrecimento do eu resulta também do fato de que as modalidades de defesa narcísica são caracterizadas pelo fato de que a psique explora uma parte de si mesma para tentar impedir o retorno do clivado e efetuar os contrainvestimentos indispensáveis. Pode-se até mesmo dizer que é a melhor parte da psique que se empenha e se aliena na tarefa de proteger o que dela resta dos retornos traumáticos primários.
Esta exploração de certas partes de si mesmo já havia sido enfaticamente observada por Ferenczi (1927-1933) em seus trabalhos sobre o traumatismo e também dá origem à impressão do falso self observado por Winnicott (1970b) a respeito das patologias do narcisismo. É importante ressaltar que a alienação de uma parte da psique em tarefas defensivas não permite que ela tire verdadeiros benefícios narcísicos primários dessa atividade. Este é o preço a pagar para garantir as tarefas de sobrevivência psíquica.
Mas o empobrecimento do eu, sempre mais ou menos presente, pode ser manifesto e estar no primeiro plano do quadro clínico. É o que acontece quando predomina o primeiro tipo de ligação primária não simbólica que descreverei a seguir: a neutralização energética.
A neutralização energética
Ela consiste principalmente na tentativa de neutralizar o retorno do clivado através de uma organização do conjunto da vida psíquica destinada a restringir tanto quanto possível os investimentos de objeto e as relações que possam reativar a zona traumática primária e o estado degenerativo de falta que a acompanhou. Toda falta que apresente o risco de reinvestir o estado traumático, toda relação
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que possa gerar um retorno da falta será evitada ou congelada, de modo que qualquer engajamento será restringido e, com ele, a vida que o acompanha. A neutralização pode ser utilizada como mecanismo complementar da organização narcísica ou como mecanismo principal.
Um primeiro exemplo clínico historicamente bem conhecido é o de Norbert Hanold, herói da Gradiva, que “petrifica” sua vida, provavelmente em decorrência da morte súbita de seus pais (o que Freud, 1907, não comenta, mas está presente na história de Jansen), antes de Gradiva-Zoé vir pouco a pouco despertar o vulcão adormecido. As características da clínica da história de Norbert não são – contrariamente ao que Freud desenvolve em sua análise, sem dispor, na época, do conceito de clivagem – o recalque e o retorno do recalcado. É antes a desneutralização de uma clivagem, como mostram claramente as figuras do fetiche, numerosas na clínica da história13, que o processo de despertar do herói revela14.
Como não é possível aprofundar aqui15 a análise que permitiria embasar essa colocação, contento-me em indicar a quem queira me seguir por este caminho que os sonhos do herói adquirem então o sentido de uma encenação autorrepresentativa do processo de “petrificação”, que metaforiza, na história, o processo de neutralização que sucede à catástrofe psíquica e à clivagem. Na história da Gradiva, à ligação não simbólica energética, à neutralização, sucede, transitoriamente, sem dúvida, uma sexualização da ligação, que leva ao esboço de uma sutura (cf. a sequência de meu desenvolvimento) de tipo fetichista, mais econômica na medida em que torna mais possível certa forma de relação de objeto.
Outra metáfora clínica da neutralização é a do “congelamento”. Ela é introduzida por Freud (1915), de maneira não metafórica, em Neuroses de transferência: uma síntese. Neste artigo, Freud faz de um tempo pré-histórico de glaciação o ponto de fixação original de várias neuroses de transferência, como se ele buscasse no processo de congelamento uma modalidade da conservação em seu estado, uma forma de pseudolatência, e, ao mesmo tempo, o ponto de neutralização histórica de uma catástrofe identitária arcaica.
A história de Kai e Gerda, no famoso conto de Andersen (2010) A Rainha das Neves, também pode servir para ilustrar essa modalidade de neutralização da parte clivada. Não poderei, novamente, aprofundar aqui a análise que me permitiria mostrar isso, mas a história do conto enfoca o modo como uma parte ferida da psique, representada por Gerda, tenta restabelecer contato com a parte clivada e
- 13 Acerca deste ponto, cf. o estudo de Bellemin-Noël (1983).
- 14 Cf. também, com as precauções de leitura que este trabalho impõe, M. Torok e Rand (1995).
- 15 Propus esta análise detalhada no meu seminário do grupo lionês de psicanálise (1997), mas o
trabalho não foi editado.
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congelada de si mesma – representada por Kai – que está aprisionada para sempre no palácio da Rainha das Neves16. Podem assim ser metaforizados o percurso e o sacrifício de uma parte do aparelho psíquico que tenta prestar socorro, a fim de o reativar, àquilo que deve ter sido clivado de si mesma para sobreviver, sem o que, porém, ela não consegue viver. No entanto, o que nos importa aqui mais diretamente é a maneira como o contato com a parte clivada se torna impossível, ou seja, a glaciação, o congelamento psíquico, que é tanto um congelamento afetivo quanto um congelamento da atividade psíquica em si.
No processo de neutralização energética simples, que evidentemente se aparenta a formas de depressão fria, ou seja, sem seu cortejo de afetos depressivos, o que é uma diferença clínica notável, tudo parece acontecer como se a psique, confrontada com o fracasso de suas tentativas para integrar a experiência traumática, conseguisse pôr de lado esta experiência até o momento em que um objeto – Zoé, Gerda –, em nome do amor ou em virtude de uma forma de contrato narcísico extremo, venha resgatar e reavivar ou reaquecer a parte da qual o sujeito teve de se clivar.
Terminarei essas observações acerca da neutralização energética e do decorrente empobrecimento do eu por um questionamento a respeito de suas conexões com o que os psicossomatistas designaram, na esteira de P. Marty (1998), como pensamento operatório ou funcionamento operatório. Veremos mais adiante que minha proposta, seguindo Freud (1924), é considerar que uma das formas de ligação não simbólica do retorno do clivado é a somatose ou a ligação bio-lógica. Nesta perspectiva, nada impede considerar que o funcionamento operatório seja o efeito sobre a psique da neutralização energética instaurada para protegê-la do retorno do clivado de uma experiência agonizante.
Se a neutralização energética, a mobilização de contracargas, como diz Freud em 1920, faz parte da maioria dos quadros clínicos da clivagem, ela vem muitas vezes acompanhada, como eu também apontei, de modalidades defensivas auxiliares. Uma delas diz respeito às formas ditas perversas de tentativas de religação secundária.
Ligação primária não simbólica e sexualização
As duas formas mais clássicas desta, aquelas que foram principalmente enfatizadas pela psicanálise, seguindo Freud (1924), são o masoquismo perverso
16 Cf. também o estudo de P. Wilgowicz (2000) sobre o vampirismo.
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e o fetichismo. Refiro-me aqui aos comportamentos que resultam de um uso perverso da sexualização e não à sua organização fantasmática.
A forma geral desta modalidade de ligação não simbólica é a que Freud (1924) relatou em torno da noção de coexcitação libidinal. A ideia central é de que as experiências traumáticas não elaboradas tentarão ser reintegradas na subjetividade a partir das possibilidades de ligação conferidas pela excitação sexual, tentando inscrevê-las assim sob a dominação do princípio de prazer- desprazer.
Na ligação de tipo masoquista, graças à coexcitação libidinal, a experiência traumática é controlada e transformada em experiência produtora de prazer. Diante do retorno compulsório da experiência agonizante, diante do retorno passivamente vivido do estado anterior, a psique e o eu comportam-se como se fossem o agente daquilo a que são de fato submetidos. Como se a psique buscasse nesse mal a fonte de seu bem17.
A coexcitação libidinal, na verdade, não deve ser considerada como um processo fisiológico pertencente a uma forma particular da atividade libidinal, ela é antes uma forma de sexualização secundária a uma experiência que não proporcionou satisfação primária. Diante da impotência vivida na experiência traumática, diante do fracasso do eu no traumatismo, a psique prefere então se apresentar como o agente, o ator, daquilo a que não pode fugir.
Tudo o que está dentro da psique é então considerado como proveniente do eu, como um desejo realizado do eu, que tenta assim assegurar sua dominação sobre tudo o que o habita. Magicamente, o eu ou o sujeito “deseja” ou finge desejar aquilo que ele é impotente para evitar ou bloquear, tentando transformar, por inversão, o que provocava o desamparo em fonte de prazer. A posição masoquista só pode ser bem compreendida em relação à problemática da dominação, em relação à sua problemática primeiramente e acima de tudo narcísica. Neste caso, a proteção narcísica é obtida através de um desarranjo do registro do prazer e daquele do desprazer: a clivagem é desconstruída e mantida, de certa maneira, por esse procedimento, graças à confusão e à inversão do bom e do mau. O sujeito prefere sentir-se culpado, mas responsável, ativo e senhor, a reencontrar a impotência e o desamparo da vivência agonizante18.
Já em 1915, Freud (apud Green, 1983) apresentou a ideia de que os processos de inversão19 antecediam o recalque, situando-se, portanto, entre clivagem e
- 17 Cf. a posição de Ricardo III, que Freud analisa em 1916.
- 18 Freud identifica bem isso em 1924, no problema econômico do masoquismo, quando assinala
que a criança que é espancada em fantasia é uma criança má e desamparada. 19 Cf. Green (1983).
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recalque, tomando o lugar de clivagens excessivamente onerosas do ponto de vista energético e amputadoras, tentando possibilitar recalques secundários, que se tornam então potencialmente concebíveis graças à ligação assim realizada. O eu trata um dilaceramento de seu pano de fundo como uma particularidade emblemática de sua organização representativa, como o brasão de sua originalidade.
É a “magia” do processo que ultraja a organização simbólica, tratando a experiência traumática como se ela estivesse simbolicamente integrada na subjetividade, tentando evitar assim o trabalho psíquico necessário à sua integração efetiva. Neste sentido, a respeito da posição masoquista, falou-se da questão de uma sexualização da relação com o supereu. Parece-me mais pertinente, como propõe G. Deleuze (1967) em Apresentação de Sacher-Masoch, analisar o contrato que vincula o sujeito ao seu objeto interiorizado. Este contrato, em que se identifica uma forma de contrato narcísico, representa o preço a pagar para assegurar-se do investimento do objeto e, assim, estar protegido de um retorno da frieza de sua ausência afetiva e, com ela, de um retorno do traumatismo primário. A solução masoquista, portanto, só se sustenta por uma cumplicidade com os objetos, que a mantém juntamente com a exploração perversa da subjetividade.
Para encerrar as considerações sobre a posição masoquista, talvez seja bom explicar que a forma de perversão que acabo de descrever não deve ser confundida com a capacidade de suportar e resistir20 a certa quantidade de excitação psíquica ou de tensão psíquica, que, ao contrário, é necessária para efetuar o trabalho de simbolização. A noção de um masoquismo guardião da vida psíquica, muito referida na literatura psicanalítica francesa, comporta, na verdade, uma ambiguidade. Designa-se deste modo uma verdadeira posição masoquista inevitável, ou, quase por abuso de linguagem, fala-se de certa capacidade de tolerar a tensão, o que efetivamente significaria dizer que uma quantidade de excitação passaria a ser considerada “boa” para a psique, ao contrário do princípio de prazer- desprazer?
Os esclarecimentos que proponho, sem pretender reduzir a amplitude da questão – aliás, muito complexa –, diferenciam ou levam a diferenciar a tensão que é contida por intermédio de uma atividade simbólica de ligação e aquela que só é contida por uma inversão narcísica, a fim de tentar ligar o valor da excitação não ligada. Somente esta última me parece verdadeiramente merecer a denominação de masoquista, pois a outra diz respeito ao efeito da simbolização primária que torna possível certa resistência da psique à tensão pulsional.
20 De acordo com o excelente termo de D. Rosé (1998).
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Precisamos examinar agora a segunda solução de ligação primária não simbólica que utiliza a sexualização: o fetichismo. É a solução graças à qual o conceito de clivagem do eu pôde ser descrito por Freud (1938). Entretanto, uma leitura atenta dos textos freudianos revela sem dificuldade que o fetiche é um modo de sutura, isto é, um modo de religação secundária da clivagem. Freud o relaciona com a experiência catastrófica da descoberta da diferença dos sexos: é ela que produz o dilaceramento do eu que o fetiche tenta suturar.
A dificuldade da demonstração de Freud está no fato de que ele não diz por que, em certos meninos, a descoberta da diferença dos sexos provoca uma vivência de catástrofe psíquica. Minha experiência clínica me permitiu formular a hipótese de que, quando isto acontece, um traumatismo primário21 anterior vem misturar- se à experiência mais tardia, dando-lhe o tom de suas particularidades próprias. Em outras palavras, a experiência da descoberta da diferença dos sexos só é catastrófica quando for o lugar da transferência de uma experiência agonizante que consegue então fazer-se representar. Ela se sexualiza assim e usa esta sexualização para tentar simbolizar-se na ordem da diferença sexual. A solução do fetiche sutura então a clivagem anterior que afetou a subjetividade, produz um representante-representativo que liga e cicatriza a clivagem, mas à custa de uma renúncia ao caráter metaforizante da simbolização psíquica.
Se, de fato, o fetiche é capaz de deslocamentos, ele interrompe, por outro lado, a geratividade metaforizante, a fixa num objeto particular e singular, emblema narcísico, outra vez, que disfarça a falha da organização representativa. No mesmo sentido, não só nas mulheres, mas também em certos sujeitos masculinos, a inveja do pênis supõe um ponto de fetichização anterior do sexo masculino, ele mesmo elevado à posição de garantia contra o fracasso da simbolização. O pênis deixa de ser então o atributo masculino que define uma identidade sexuada, torna-se um atributo mágico que protege contra o retorno das experiências agonizantes clivadas por causa de sua inaptidão a serem simbolizadas.
A clínica das últimas décadas que descreve a relação de objeto fetichista (Kestemberg, 1973) ou certas formas que se aparentam ao fetichismo da anorexia feminina parece apontar para a direção que proponho – na medida em que o sexual não poderia ser, assim como os outros significantes psíquicos, idêntico a si mesmo, não sendo então o ponto de realização obrigatório das cadeias associativas – de uma concepção em que ele apenas ocupa um lugar, por certo, fundamental, mas mesmo assim relativo, nas séries significantes.
21 Ele afeta, portanto, a feminilidade primária, confundida então com as características do sexo feminino.
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Outra vez é grande a ameaça de confundir a importância do sexual e, em particular, do sexual-fálico, lugar de reorganização estrutural da história libidinal anterior (Roussillon, 1997b) – ponto, portanto, em que se cruzam as reorganizações significantes, mas, neste sentido, relativo a uma época particular da organização psíquica – com um pansexualismo que teria esquecido a relatividade idiossincrática do seu momento histórico e se apresentaria como ultima ratio da psique.
Por isso os conceitos de sexualização e dessexualização, ou seja, os processos através dos quais se produz o sexual devem passar ao primeiro plano da análise, em detrimento de uma sexualidade que se dá como perfeitamente idêntica a si mesma e como algo intrinsecamente definido em si22.
Ligação não simbólica primária somática
Já em 1920, Freud observa, acerca dos estados de neurose traumática de guerra, que um ferimento físico ocorrido no momento oportuno protege contra o desenvolvimento do estado traumático. Ele formula então a hipótese de que as quantidades de excitação invasivas afluem na direção do ferimento e, se este for suficientemente circunscrito, protege assim a psique do transbordamento.
Esta hipótese embasa a ideia de que, diante do retorno do estado traumático clivado, uma afecção somática pode desempenhar o mesmo papel e vir ligar corporalmente, numa somatose alimentada então por essa afecção, aquilo que a psique não consegue ligar com seus próprios recursos. Uma das bases narcísicas, o corpo, pode assim ter uma de suas partes ou uma de suas funções sacrificada para ligar o que ameaça a psique. A somatose permite, além disso, tentar restabelecer um vínculo com os objetos se estes forem mais sensíveis à materialização concreta do sofrimento, ao corpo deste.
O processo da solução somática pode funcionar em dois níveis. Ele pode contentar-se em manter uma doença somática em atividade, conferindo-lhe assim uma função psíquica, ou então pode contribuir para produzir a própria afecção somática, infiltrando de maneira alucinatória as percepções traumáticas anteriores nas percepções e sensações atuais do soma. Como mostrei em diferentes oportunidades, em certas condições, a alucinação de uma queimadura “queima” mesmo23 e leva o corpo a delirar em seu funcionamento.
- 22 A respeito deste assunto, cf. Roussillon (1998).
- 23 Cf. o estudo que dedico à solução bio-lógica do traumatismo (Roussillon, 1995b).
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No mesmo sentido, prolongando as hipóteses anteriores, pode-se também pensar que esse mesmo processo é encontrado em certas formas de sobreinvestimento das percepções ou das sensações que absorvem os excessos não ligáveis pela atividade representativa. Aliás, esse processo é assinalado por Freud (1937a) em Construções em análise, acerca do caráter excessivamente claro, quase alucinatório, de certas percepções que vêm ocupar o lugar da rememoração de lembranças traumáticas. Na cena descrita a respeito do fetichismo, Freud ressalta também a fixação perceptiva nas percepções e sensações que cercam a própria cena traumática.
Se, por um lado, a sensação nos remete a este “exterior” interno que é o corpo, por outro, a percepção nos conduz à realidade externa e à sua utilização nas modalidades de ligação não simbólica dos traumatismos primários.
As soluções grupais e institucionais
Meus comentários sobre estas soluções serão breves, pois já tratei deste assunto em outro momento, acerca da gênese e das bases simbólicas do enquadramento e da instituição (Roussillon, 1995a). De acordo com a hipótese formulada por Freud em 1921, em Psicologia de grupo e análise do eu, uma parte do aparelho psíquico pode ser exteriorizada e sobreposta a um objeto externo, segundo a célebre expressão: o objeto pode ser posto no lugar do ideal do eu.
Prolongando essa observação fundadora de Freud, os trabalhos de Jacques (1951), Bion (1961), Bleger (1988), Kaës (2000), Anzieu (1975), etc. permitem conceber que as instituições possam servir de objetos continentes ou de sistemas de ligação de parte da tópica interna projetada. Isto vale ainda mais para o utópico daquilo que é clivado do eu, como mostrou Bleger (1967) em particular, e que pode ser localizado fora, em objetos (é o mecanismo descrito como identificação projetiva) ou em sistemas grupais ou sociais. A militância (Chouvier, 2009), a ideologia (Kaës, 1980), quando elas envolvem formas de paixão, testemunham isso reiteradamente. Mas, menos ruidosamente, como mostram trabalhos realizados em Lyon sobre a problemática do desemprego, o trabalho e o seu entorno organizacional e humano também podem servir para manter ligadas as partes clivadas pós-traumáticas da psique, segundo indicam as descompensações que ocorrem em caso de perda de emprego.
Neste caso também, em certas condições de funcionamento, a instituição ou o enquadramento podem funcionar como fetiche do grupo, como fetiche coletivo; a história da religiosidade está repleta de exemplos disso. As hipóteses
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de Freud (1939), por exemplo, concernentes a Moisés e o monoteísmo supõem que a religião monoteísta é oriunda da sutura de uma clivagem (Freud postula a existência de dois Moisés diferentes fundidos numa única história). Essas soluções evitam a neurose, a perversão ou a psicose individual.
A solução delirante ou psicótica
Outra modalidade de ligação e de sutura do retorno do clivado, sobre a qual também serei breve, pois um capítulo do livro [onde o original deste artigo foi publicado] será dedicado ao assunto, nos é fornecida pela psicose e pelo delírio. No seguimento de uma descompensação ou de uma desconstrução da clivagem, a experiência agonizante, não simbolizada primariamente e assim ativada de maneira alucinatória, vai ser projetada no presente do sujeito, subvertendo o seu padrão. Compelido à necessidade de significar sua experiência atual, o sujeito, confrontado com essa confusão alucinatória dos tempos, tentará significar essa experiência subjetiva com os recursos de seu presente: ele delira e tenta assim autorrepresentar secundariamente a experiência agonizante primária. Observemos que tal solução supõe a coincidência de uma alucinação com uma percepção, mas só mais tarde, em Construções em análise, Freud (1937a) formula a hipótese desta sobreposição, a qual estaria na origem de um profundo remanejamento metapsicológico, que não podemos abordar dentro dos limites desta reflexão.
O delírio é uma tentativa de ligação simbólica secundária de uma experiência traumática primária não simbolizada primariamente. É também um modo de cicatrização, pela simbolização secundária, do retorno do clivado da experiência agonizante primária. É por esta razão que os delírios representam muitas vezes experiências cataclísmicas, como o delírio de Schreber (Freud, 1911), pois tentam significar no presente ou no futuro a experiência agonizante que não conseguiram inscrever em seu devido tempo na história.
Conclusão
A reformulação metapsicológica implicada pela evidência de uma experiência além do princípio de prazer confere a certas experiências o status de traumatismos primários caracterizados pelo estado de desamparo primário. Este tende a substituir a referência central, a angústia de castração, ou, antes, oferece a esta uma alternativa para a inteligibilidade dos estados de sofrimentos narcísico-
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identitários. Enquanto a problemática da castração dava acesso à questão da falta em relação ao objeto, sendo, portanto, fator de objetalização, de acordo com a expressão de Green (1983), o estado de desamparo primário dá acesso à questão da falta de ser e à instauração de modos de organização que tentam mais ou menos prescindir do objeto, pelo menos do objeto considerado como outro-sujeito. A psique se depara com a questão de saber como impedir o retorno dos estados primitivos de desamparo, fazendo-o a qualquer preço, pois disto depende sua sobrevivência. São os tipos de solução e de organização instaurados então pela psique que permitem pensar os diversos tipos de quadros narcísicos que a clínica psicanalítica nos apresenta.
Abstract
Helplessness and the attempts to solve primary trauma
The author proposes a model for primary trauma based on a state of primary helplessness which generates psychic anguish. He then explores the further consequences of defenses and the many non-symbolic “solutions” installed in an attempt to block the return of this helplessness. Those different solutions account for many of the symptoms observed in narcissistic diseases.
Keywords: Helplessness. Anguish. Symbolization. Splitting. Inversion. Primmary.
Resumen
El desamparo y los intentos de solución para el traumatismo primario
El autor propone un modelo del traumatismo primario basado en un estado de desamparo primario que genera una agonía psíquica. Explora, a continuación, las consecuencias posteriores de las defensas y las distintas “soluciones” no simbólicas instauradas para tratar de bloquear el retorno de ese desamparo. Esas distintas soluciones abarcan una gran parte de los cuadros observables en las patologías del narcisismo.
Palabras llave: Desamparo. Agonía. Simbolización. Clivaje. Inversión. Primario.
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Recebido em 14/08/2012 Aceito em 14/09/2012
Tradução de Vanise Dresch Revisão técnica de Lúcia Thaler
René Roussillon
12 quai de Serbie
69006 Lyon – France
e-mail: rroussillon7@gmail.com
© René Roussillon
Tradução em português Revista de Psicanálise – SPPA
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