Teoria da simbolização: a simbolização primária

Teoria da simbolização

 

Teoria da simbolização: a simbolização primária[1][2]

René Roussillon

 

Abordarei uma maneira de falar da questão da articulação entre psicanálise e psicoterapia. Octavio Souza apresentou, na conferência “Por um pensamento clínico complexo”, uma opção possível, que consiste em pensar a psicoterapia como um tempo preparatório. Ele desenvolveu toda uma série de argumentos e tomou o caso apresentado[3] como uma espécie de exemplo desse tempo preparatório. Eu penso que também é possível tomarmos o problema de outro modo, uma vez que considero um mau sinal que enviamos à sociedade quando dizemos que a psicanálise não é uma psicoterapia. E se opomos a psicoterapia à psicanálise, há uma mensagem implícita de que a psicanálise não é uma psicoterapia. No que se refere a tal ponto, eu sou muito próximo à posição de Freud que opõe a psicanálise – chamada por ele de psicoterapia psicanalítica, a qual é fundada sobre a análise da transferência – ao que ele chama de psicoterapia médica, a qual se funda sobre a sugestão, sobre a utilização da transferência; utilização da transferência para fazer a sugestão.

A minha opção consiste em pensar sobre como nós podemos alargar a competência do trabalho psicanalítico em direção a todo um núcleo de pacientes, que são pacientes em intenso sofrimento e que possuem muita dificuldade com a psicanálise no sentido clássico do termo. O sentido clássico do termo é a psicanálise tal como ela foi concebida para dar conta da neurose, isto é, para dar conta de um modo de funcionamento psíquico fundado sobre o recalcamento e de um quadro clínico fundado sobre o retorno do recalcado. Em relação àquilo com que somos confrontados, por exemplo, no caso apresentado, assim como em grande parte dos sofrimentos narcísicos: trata-se de modos de funcionamento psíquico fundados sobre mecanismos de clivagem, ou sobre mecanismos de retraimento / desinvestimento, os quais engendram quadros clínicos bastante diferentes que podem entrar em conflito com a situação psicanalítica tradicional.

Desse modo, a questão é a seguinte: como podemos continuar sendo psicanalistas com pacientes como esses? Uma solução adotada com frequência é pensar que é preciso fazer outra coisa, diferente da psicanálise; como disse Octavio Souza, de maneira a preparar o terreno. Eu acho que é possível tentarmos refletir sobre como alargarmos o pensamento psicanalítico para tratarmos psicanaliticamente esses pacientes.

Logo, proporei reflexões nesse sentido, reflexões sobre o alargamento da competência do pensamento psicanalítico de modo a abranger todas as problemáticas narcísicas. O que vou expor aqui é fruto de um trabalho de pesquisa que possui três aspectos:

1) A minha própria prática psicanalítica de cerca de trinta a quarenta anos.

2) A minha prática como professor em um laboratório de pesquisa – pesquisa clínica fundada sobre o método psicanalítico e suas expansões, seus remanejamentos extremos quando se trabalha com criminosos, com bebês e com tudo que vocês possam imaginar, como, por exemplo, as grandes violências relacionadas às crianças, aos adultos, tudo o que há de mais terrível, problemas clínicos como o autismo, a psicose, os adolescentes antissociais, etc.

3) Seminários de supervisão de pesquisa, que desenvolvo há cerca de vinte anos, com grupos de psicanalistas que possuem uma formação IPA. São oito grupos, cada um com sete psicanalistas; são pessoas que têm uma formação completa. Nós trabalhamos em cima de tratamentos que estão fracassando na prática desses psicanalistas. Eles possuem formações diversas: kleiniana, freudiana, winnicottiana, pós-kleiniana, lacaniana… Então nós trabalhamos com tratamentos que estão fracassando, quer dizer, tratamentos que ao longo de três, quatro, cinco anos dão ao analista a impressão de que as coisas não estão andando. O objetivo dos seminários é tentarmos pensar como desbloquear esses tratamentos. Eu comecei em 1993; eu não contei exatamente, mas são cerca de duzentos e cinquenta a trezentos tratamentos. Nós trabalhamos três dias todos os meses em cima desses tratamentos.

Eu contei isso para falar da maneira como seleciono as minhas hipóteses: não é a partir de princípios ideológicos, nem de uma concepção teórica da psicanálise. Nós prestamos atenção ao que está funcionando – se o paciente melhora, se o tratamento se desbloqueia e sai da estagnação. E a gente trabalha em cima de cada tratamento, até que ele se desbloqueie e saia da estagnação, se desenvolva.

Tendo acabado de falar sobre essa experiência, vou falar agora sobre o que extraí dela. Para facilitar o diálogo e partindo da ideia de que a base do vocabulário de todos os analistas é, grosso modo, o pensamento de Freud, exporei as minhas proposições em vinculação com o pensamento de Freud. Farei também algumas articulações com os grandes pensamentos psicanalíticos contemporâneos ou, para dizer melhor, com os pós-freudianos.

Conversando com Octavio Souza, ele disse que seria interessante que começássemos a refletir sobre os objetivos da psicanálise, e eu pensei ser esta uma boa questão para introduzir o que quero abordar. Dentre os objetivos frequentemente evocados, existem alguns com os quais eu tenho problemas, pois os considero ideológicos, ligados a questões que dizem respeito à normalização social. Sendo assim, prefiro tentar refletir sobre os objetivos independentemente de critérios sociais, em vinculação com a lógica do trabalho psicanalítico. Quando nos voltamos para a representação desses objetivos em Freud, percebemos que existem coisas muito precisas propostas por ele.

Existe um primeiro modelo, que foi chamado na França de ‘A idade de ouro da psicanálise’, no qual se considera que o sujeito representa alguma coisa daquilo que ele diz; ele recalca aspectos relacionados aos conflitos, o recalcamento funciona mais ou menos – na verdade, não muito bem – e o quadro clínico que ele apresenta, o sofrimento que ele apresenta está ligado ao retorno do recalcado. De acordo com tal modelo, o trabalho do psicanalista é adivinhar as representações recalcadas inconscientes e comunicá-las com tato ao paciente, de modo que ele tome consciência daquilo que ele recalcou. É o modelo de 1907 a 1915, tipicamente freudiano. É um modelo que ainda funciona para muitos psicanalistas.

A partir de 1917, 1918, 1920, Freud vai fazer evoluir esse modelo. Ele vai considerar que um certo número de coisas nunca foram conscientes. Então, não é possível tomar consciência, retomar consciência de algo que nunca foi recalcado porque nunca foi consciente. E podemos encontrar, por exemplo, na introdução do artigo “O ego e o id”, Freud dizendo que não é mais possível falar em ‘O inconsciente’ porque há mais de um. Há o inconsciente que pode facilmente voltar a se tornar consciente – Freud o chama de ‘pré-consciente’; há um inconsciente que pode voltar a se tornar consciente porque foi recalcado – é o inconsciente que foi primeira e classicamente tomado em consideração; e há ainda alguma coisa que só pode se tornar consciente sob a condição de ser transformada. Logo, o modelo muda; não se trata mais simplesmente de tomada de consciência, mas de uma transformação para se tornar consciente – uma boa parte do pensamento de Bion é fundada sobre esta representação.

O problema é que, no primeiro modelo, o analista estava fora da cena e bastava a ele falar alguma coisa para fazer seu paciente tomar consciência de algo que estava nele mesmo. No segundo modelo, é preciso transformar as coisas, e aí o analista está profundamente implicado. Então, em relação à evolução do pensamento psicanalítico, todo o problema quando o analista está implicado é a questão da sugestão, da influência. A ameaça que pesa sobre a psicanálise quando o analista está implicado é a de que um novo modo de sugestão esteja em jogo.

Há um indício muito bonito em um artigo de Freud que concerne aos sonhos de complacência. Explicarei o que são os sonhos de complacência: Freud faz uma interpretação, o paciente sonha, o sonho mostra que a interpretação de Freud é verdadeira, é boa, e Freud diz “ele sonhou esse sonho para me agradar, não é uma verdadeira confirmação, só significa que ele gosta de mim”. Isso é terrível! Porque, até então, o sonho era o bastião narcísico do paciente. O analista não está presente quando o paciente sonha, não pode ter influência; então, tínhamos certeza de que não se tratava de sugestão – este é o primeiro modelo e, portanto, ele é falso. Pois podemos sonhar para agradar a um outro, podemos ter uma atividade de simbolização para agradar a um outro – ao analista e, eventualmente antes, aos pais. Logo, todo este trabalho que consiste simplesmente em buscar dar uma forma, representar, simbolizar não é suficiente para definir o trabalho do psicanalista, pois isto também pode ser um trabalho de sugestão, de influência.

Há então um outro modelo que vai surgir, centrado não somente na simbolização. A simbolização é uma atividade de representação que sabe que é uma atividade de representação. A gente pode representar sem saber que representa; a gente não pode não representar. A diferença não se dá em termos de algo que é representação e algo que não é representação, pois todo o nosso aparelho psíquico e todo o nosso cérebro são feitos para representar; mas a gente nem sempre sabe que está representando. Por exemplo: na psicose, o sujeito toma a sua atividade representativa por uma atividade perceptiva; isto se chama alucinação. Na verdade, é preciso diferenciar a representação da representação simbólica. A representação simbólica é uma representação que sabe que ela é representação – “eu penso, eu imagino, eu acredito”… Não se trata de “eu percebo” e sim de “é isso”. Isto é a simbolização: a apropriação subjetiva, esta atividade de simbolização colocada a serviço do próprio sujeito.

Isso se encarna em Freud em uma fórmula à qual Lacan dedicou muita atenção: “onde o isso está, o sujeito, o eu deve advir”. Tal formulação foi um pouco complexificada na França com Jean Louis Donnet, pois percebemos que ela não concerne apenas ao isso, mas também ao supereu, o que daria em “onde o isso e o supereu estão, o sujeito deve advir”. Deste modo, o trabalho não se centra apenas na simbolização, mas também no processo de apropriação subjetiva.

Aquilo com que me confrontei na vida pulsional e no encontro com os objetos deve ser integrado na minha subjetividade. É preciso que eu ache alguma maneira de integrá-lo na minha subjetividade. Então, nós temos um modelo geral que é o modelo terminal de Freud, no qual não há nenhuma consideração quanto à adaptação social. A ideia é que nós devemos integrar aquilo com que fomos confrontados. E o sofrimento, portanto, diz respeito ao que não foi integrado ou foi mal integrado na nossa experiência subjetiva. É possível ver que na fórmula de Freud – “onde o isso está, o eu deve advir” – o termo consciência desaparece. O tornar-se sujeito não é simplesmente uma questão de consciência, é mais uma questão de apropriação, o que quer dizer que nós podemos nos apropriar sem haver uma tomada de consciência. O objetivo da psicanálise não é necessariamente uma tomada de consciência de tudo, mas integrar aquilo com que fomos confrontados.

Nós vemos então emergir um novo paradigma para o trabalho psicanalítico. Nós trabalhamos atualmente na Europa em torno da reflexividade. É possível formular em termos muito simples e seria isto o objetivo atual da psicanálise: ser capaz de sentir e de se sentir, ser capaz de ver e de se ver, ser capaz de ouvir e de se ouvir. Levando em conta o que Ferenczi chama de clivagem profunda, ser capaz de se sentir a partir de um ultrapassamento da clivagem profunda. Ser capaz de ver e de se ver: ser capaz de ultrapassar a clivagem no sentido freudiano do termo – o que Freud evoca quando ele pensa sobre a questão do fetichismo, por exemplo. Ser capaz de ouvir e de se ouvir: ser capaz de ultrapassar o recalcamento.

Nós temos então uma noção muito simples de três formulações que correspondem, grosso modo, à integração da vida pulsional. Se sentir é aceitar ser afetado pelo representante afeto da pulsão; ser capaz de ver e de se ver é integrar a representação de coisa como, por exemplo, na atividade onírica; ser capaz de ouvir e de se ouvir é integrar a representação de palavra, que Freud define como sendo o terceiro sistema de representação da pulsão. Logo, um sujeito capaz de se sentir, de se ver e de se ouvir possui um triplo modo de relação consigo mesmo e também é capaz de sentir, ver e ouvir o outro, além de articular estes três sistemas de reflexividade.

É possível definirmos todas as psicopatologias a partir disso. O que já foi feito classicamente, por exemplo, com a histeria: dizíamos que havia uma dissociação entre o afeto e a representação, o que foi descrito sob o termo “A bela indiferença das histéricas”; a histérica tinha a representação, mas o afeto era convertido. O que temos na esquizofrenia, na psicose: o sujeito não consegue se sentir; esquizofrenose significa “o corte”; o corte do phrène significa o corte do sentir, o corte da respiração, o corte da experiência corporal – o phrène é a respiração, o pulmão e phrên significa o fundo da alma na terminologia dos gregos; o phrène do schizophrène é o pulmão no mundo grego.

Em relação ao objetivo da psicanálise, o que é formidável em tudo isso é que não há ideologia. Nós escutamos um sujeito, nós nos preocupamos com a gestão, com a articulação no interior dele, buscando diferentes formas de reflexividade. Nós vamos nos preocupar com aquilo que o sujeito não sente dele mesmo, mas que ele nos faz sentir de uma certa maneira. Nós vamos nos preocupar com aquilo que o sujeito não vê dele mesmo, mas que ele nos mostra; com aquilo que ele não ouve dele mesmo, mas que ele nos faz ouvir por meio do seu aparelho de linguagem. A partir do momento em que o objetivo da psicanálise assim evolui, é preciso fazer uma série de reflexões sobre o método, pois o método também deve mudar. Ou melhor, nós precisamos reavaliar nossa representação de fundo acerca do método psicanalítico.

A fim de tentarmos pensar juntos sobre essa evolução, eu proponho partirmos do método fundamental da psicanálise. É uma questão muito mais difícil do que se imagina! É uma questão que muitas vezes resolvemos dizendo: “Existe a regra da associação livre; nós pedimos ao paciente que associe livremente”. E nós escutamos as paradas dessa associatividade livre, partindo da ideia de que quando há uma parada é porque algo foi recalcado, foi clivado, há uma resistência, e existe um mecanismo de defesa que opera contra a associatividade.

Nós temos um ponto de complexidade suplementar que foi muito sublinhado nos últimos anos pelos psicanalistas norte-americanos: não se trata simplesmente de associatividade nas sessões, mas de uma associatividade de transferência, isto é, de uma associatividade endereçada ao analista. E um sujeito que sempre associaria endereçado a outro sujeito… isto seria ininteligível, incompreensível. Então, o fato de que a associatividade seja endereçada impõe uma organização narrativa da associatividade. Nossos pacientes associam e nos contam; eles organizam as suas associatividades em cenas, que são cenas e relatos que podem ser transmitidos para serem inteligíveis. Como se faz isso? É aí que a complicação aparece.

Primeira complicação: muitos pacientes não são capazes de desenvolver uma associatividade livre. É possível até dizermos que quando eles são capazes de desenvolver uma associatividade livre é porque a análise está terminada. Logo, essa regra formulada no início – a regra da associação livre – é na verdade um horizonte. Isso para mim é algo extremamente essencial. A associatividade é prescrita e, ao mesmo tempo, ela é um objetivo. Se ela é prescrita, se ela é um objetivo e se o paciente não é capaz de colocá-la em prática desde o início, isto diz respeito ao trabalho do analista.

E aí nós caímos no segundo aspecto da regra, que não é simplesmente a atenção flutuante do analista, mas a prescrição, a obrigação de um outro tipo de escuta particular: escutar a sucessão das associações do paciente como comportando necessariamente um vínculo. Se o paciente diz isso no início da sessão, depois aquilo, depois aquilo outro, estas três coisas estão vinculadas, mesmo se não entendemos o tempo inteiro por que. Se a vinculação é consciente, se ela é lógica, muito bem. Se não é esse o caso, é porque faltam elos; estes elos estão recalcados ou clivados e o trabalho é tentarmos pensá-los, compreendê-los. Isso quer dizer que o que é fundamental na regra não é dizermos para o paciente que ele não está associando livremente – tal regra nos constrange. Cabe a nós tentarmos entender como as coisas se associam no paciente.

Freud dá outra indicação fundamental para a compreensão do que acontece no trabalho analítico com o paciente. Ele explica dizendo: “Olha o que eu digo para o meu paciente: imagine que você está em um trem, você vê as paisagens passarem do lado de fora e você conta a alguém que não as vê sobre as paisagens que você está vendo passar”. Aí ele prescreve as transformações sobre as quais falei anteriormente. Primeiro, o campo motor; se o trem não se move, não há paisagens que passam. Então, há um motor, há a pulsão, há alguma coisa que coloca o aparelho psíquico em movimento. E vamos ver um certo número de panes nos pacientes, na quais não vai acontecer o movimento. De todo modo, em primeiro lugar, há a pulsão e o campo motor. Esse movimento motor transforma-se em movimento visual: há paisagens que passam; há uma transformação do motor, da pulsão, em representação de coisa; é o processo que Freud descreve no sonho. Há ainda uma segunda transformação: a transformação do campo visual no campo verbal; você vê as paisagens e as descreve para alguém que não as vê; é uma segunda transformação.

Isso quer dizer uma coisa: que o paciente é capaz de fazer tudo isso, que ele é capaz de transformar suas impulsões, sua pulsão, seus movimentos, em um sistema metafórico, em um sistema de imagem, em uma paisagem. Em seguida, ademais, ele transforma essa paisagem em alguma coisa verbal. Todo o problema das psicopatologias das situações difíceis em análise concerne aos pacientes que não são capazes de transformar seu movimento motor em metáfora, em imagem visual, ou que não conseguem colocar em palavras as imagens que se produzem neles; que no lugar de fazer esse sistema de transformações progressivas vão, por exemplo, expressar diretamente no campo motor o que está acontecendo. Ou então, no lugar de passar por imagens e metáforas, vão começar a nos mostrar; não a nos dizer e a nos mostrar no dizer – isto é a metáfora, a imagem tornada verbal – mas a nos mostrar alguma coisa.

Por exemplo: tenho uma paciente que me diz “então pffffff”; ela não me diz “então eu desabei” e sim me mostra o seu desabamento. Na prática hospitalar, eu tive uma paciente que fez uma operação no alto da coxa (em medicina psicossomática, por exemplo) e ela levanta a saia e me mostra a cicatriz; ela me faz ver. Também com a criança, por exemplo, quando há um movimento motor e ela não consegue desenhar, isto é, transformar em uma representação visual; ela gira por toda a sala, é mais do que desenhar toda a agitação que ela está sentindo – isto acontece, por exemplo, com algumas crianças autistas.

Uma outra possibilidade ainda é a de curto-circuitar a representação visual; passa-se diretamente do campo motor para a palavra. Temos aí um modelo de ação pela palavra. É claro que a palavra é sempre um sistema de ação, mas pode ser um sistema de ação refletida. Eu falo de uma metáfora e é a minha metáfora que age. Ou eu posso agir pela minha voz: falar com uma voz muito doce ou muito dura. Eu ajo sobre vocês por meio da minha fala, eu me aproprio de vocês, eu posso imobilizar vocês com uma certa maneira de falar. Eu não conto a você sobre uma fantasia, por exemplo, em que a minha parceira sexual está presa à cama; é a minha maneira de falar que prende você. Isso foi muito bem descrito por Bion quando ele fala do aparelho psíquico como um aparelho de evacuação, muscular. Ou seja, uma transferência direta da motricidade no aparelho verbal.

Todas as vezes que o sistema de transformação que acabei de descrever não funciona ou falha, então analisamos na sessão e percebemos que há outras formas de expressividade diferentes da expressividade verbal. Existem outras linguagens que aparecem na sessão, e não simplesmente a linguagem verbal. E assim sentimos que o método analítico não pode mais se contentar em escutar apenas a associatividade verbal. Na verdade, uma certa tendência lacaniana levou a acreditar que a psicanálise era a escuta da linguagem verbal. Eu desafio vocês a encontrar tal formulação em Freud. Eu fiz um longo estudo para tentar ver como Freud funcionava verdadeiramente, e eu consegui mostrar que Freud tinha uma teoria da associatividade polimorfa. Ele escuta um fragmento de palavra, um sintoma somático associado, um certo estilo de afeto misturado a isso tudo, e a configuração que ele escuta é o conjunto dessa associatividade – o que todos os psicoterapeutas de criança fazem!

A associatividade é polimorfa, ela não é uma associatividade linguageira. E a nossa escuta deve ser polifônica, uma vez que temos que ouvir como as coisas se associam umas em relação às outras. Isso coloca problemas consideráveis à técnica psicanalítica. Coloca problemas consideráveis ao corpo do psicanalista. Será que eu, psicanalista, só vou falar com palavras? Será que vou falar com meu corpo? Será que eu posso não falar com meu corpo? Mesmo quando estamos atrás, vocês acham que o paciente não escuta quando nós nos mexemos? E será que a nossa voz não é cheia de corpo? Será que ele não está sempre presente nas nossas avaliações das inflexões, do tom, do tamanho da frase? Será que não está sempre presente no ritmo das nossas intervenções? E quando estamos face a face, será que nosso corpo não está falando o tempo inteiro?

A questão está colocada: onde formamos psicanalistas de modo que eles levem em conta essa dimensão nas suas intervenções? Quando eles fazem supervisões nas formações analíticas, será que não é preciso falar não apenas sobre o que eles devem ou não devem dizer mas também sobre como, com que voz, com que tom, com que ritmo, com qual postura psíquica? Será que é dito nas supervisões se eles devem falar de cima, com um tom que fala de cima ou com um tom perto do outro, perto da emoção do outro? Quando se está face a face, será que as supervisões fazem com que o gestual seja trabalhado? Será possível trabalharmos com crianças autistas sem levarmos em conta essa dimensão? Com pacientes psicóticos, com pacientes sem-teto? Você tem, por exemplo, um paciente sem-teto que você encontra na rua, no canto de uma calçada; será que você vai falar com ele de cima ou será que você vai se agachar para falar com ele estando com o rosto no mesmo nível, na mesma altura? Será que isso não tem importância? Será possível negligenciar esse tipo de coisa? Será que o nosso corpo, a nossa aparência, o nosso cheiro… toda a nossa expressividade não suscita algo no modo de relação?

Eu tenho uma grande prática de supervisão de situações muito difíceis. Eu encontro psicanalistas muitíssimo espertos, que compreendem tudo; isto não funciona! E encontro outros que não parecem ser muitíssimo espertos, que não compreendem tudo; isto funciona! Qual é a diferença? O modo de aproximação do mundo emocional; o modo de se estar dentro do próprio corpo; modalidades de intervenção em que se levanta a sobrancelha, em que se levanta a testa, em que se diz “você acredita que…?” em tom de espanto. O corpo é interpretante e isto é muito difícil em supervisão, pois as pessoas contam com palavras e seria necessário que elas também contassem com o corpo delas.

Nós falamos do método. Agora, vou passar a falar dos conceitos dos quais precisamos. Vou retomar algo que comecei a evocar ontem[4]. O primeiro conceito é uma evolução da concepção de repetição. No pensamento psicanalítico freudiano de antes de 1920, quando um sujeito repete alguma coisa quer dizer que ele a deseja. Trata-se do primado do princípio de prazer: nós repetimos as experiências de satisfação e evitamos as experiências de insatisfação. Em toda a clínica dos limites e dos extremos, nós temos, além dessa repetição, uma outra repetição na qual as pessoas repetem situações insatisfatórias. Esta repetição de situações insatisfatórias vai levar Freud a pensar para além do princípio de prazer e a forjar hipóteses sobre estas repetições para além do princípio de prazer.

Retomarei então, rapidamente, o que eu disse ontem. A última palavra que eu encontrei em Freud concernindo ao sentido da compulsão à repetição é que se trata de uma compulsão à integração. Nós repetimos enquanto não conseguimos integrar uma experiência. Essa repetição vai ser vivida como muito ameaçadora pelo aparelho psíquico, como ataque. Pois como se trata de algo que nós não integramos – quiçá trata-se de algo que busca um lugar do qual dependemos – nossa própria experiência subjetiva não integrada é vivida como uma espécie de resto ou dejeto interior e, portanto, como algo ameaçador. É por isso que nós tendemos a pensar que é uma expressão da destrutividade. Mas a linha que foi traçada por Freud e muito desenvolvida por Winnicott em “Fear of breakdown” – o medo do colapso, do desabamento, da loucura – e em todos os seus escritos terminais e debates com os kleinianos sobre a inveja, é que essa aparência de destrutividade dá testemunho do fato de que algo precisa ser integrado, precisa encontrar lugar, e é preciso haver uma modificação para que tal lugar seja encontrado. Então, grosso modo, esta é a nova hipótese a propósito da compulsão à repetição: nós repetimos experiências arcaicas, experiências que não foram integradas, e nós as repetimos enquanto não conseguimos integrá-las, enquanto não encontramos uma maneira de calá-las.

A linha que nos propõe Freud nesse momento é que nós tentemos pensar sobre essas experiências arcaicas e suas características, porque são elas que, como diz Freud, virão se misturar à conversação psicanalítica. E aí nós vamos encontrar uma nova particularidade da evolução do trabalho psicanalítico, uma evolução que se torna necessária à medida que somos confrontados com processos dominados por aspectos narcísicos.

Uma das coisas que coloca em impasse o sujeito que tem um sofrimento narcísico importante é que toda vez que ele se pensa, ele se pensa sozinho; ele se pensa de si mesmo a si mesmo. É como se ele dissesse: “o meu eu é uma bolsa e isto dentro da bolsa sou eu”. Isto é um ponto absolutamente essencial: nós estamos diante de uma representação bastante primitiva do eu, segundo a qual tudo que está dentro sou eu.

Lembremos que em “Luto e melancolia” Freud diz, sobre a melancolia, que é o próprio arquétipo da neurose narcísica. Na melancolia, diz Freud, a sombra do objeto cai sobre o eu. Isso significa que o que Freud diz é que dentro da bolsa do eu não tem só o eu, tem também o objeto – o que vai complicar particularmente a relação do sujeito consigo mesmo. Então, em 1915, Freud diz que a sombra do objeto cai sobre o eu, e nos dez anos seguintes vai haver uma questão sobre a qual Freud vai trabalhar. Primeiro, ele vai sofisticar como o objeto cai. E tudo isso para chegar em 1926, em “Inibições, sintomas e ansiedade”, e dizer que uma das características daquilo que cai sobre o eu é a de ser assimilado pelo eu. Quando a sombra do objeto cai sobre o eu, o eu toma a sombra do objeto por ele mesmo. É isso que coloca, de uma certa maneira, o narcisismo em impasse.

O narcisismo tem uma teoria narcísica do narcisismo. O narcisismo crê que aquilo que existe no interior dele é ele e foi ele quem fez – ao passo que é um resultado do seu encontro com os objetos, está misturado com particularidades dos objetos encontrados e, em especial, está misturado com todo o peso das inter-relações e interações precoces que ele teve na construção da sua relação com o ambiente primitivo. Consequência: enquanto em toda a psicanálise tradicional o ponto e único ponto de referência do sujeito é o próprio sujeito, se nós mantemos esta mesma perspectiva nas problemáticas narcísicas nós formamos uma colusão com o postulado narcísico do sujeito de que foi ele sozinho que fez a sua vida psíquica, de que tudo que ele tem nele é ele, é ele e vem dele.

Essa ideia do auto-engendramento foi muito trabalhada na Europa, por exemplo, por Piera Aulagnier – mas ela trabalhou com a ideia de que o sujeito delirante pensava ter concebido a si próprio. Na descrição da psicose há toda uma série de descrições de teorias delirantes sobre a maneira como são fabricados os bebês, por exemplo.

Vou dar um pequeno exemplo tirado de um texto de Freud. Em 1890 ele escreve um artigo que se chama “Tratamento psíquico ou mental”. Ele descreve um garotinho que cai e que se machuca; sua mãe está ao seu lado e lhe diz “olha ali aquele passarinho azul, você viu como é bonito o passarinho azul?”; ela desvia a atenção do filho, diz Freud; é um método hipnótico. Dois anos mais tarde, em 1892, Freud estuda os mecanismos de defesa que estão no interior da vida psíquica, e ele descreve um mecanismo de desvio da atenção no interior da vida psíquica – é a sua primeira descrição do recalcamento. A mãe foi interiorizada e a defesa proposta pela mãe foi interiorizada pela criança. É claro que é muito mais complicado do que apenas esses dois tempos, mas, em todo caso, trata-se de processos. Nossos processos psíquicos, particularmente aqueles dos dois primeiros anos de vida, são processos que são construídos numa interação com o nosso ambiente; numa interação carregada de pulsão, carregada de tramas.

O trabalho analítico quando a sombra do objeto cai sobre o eu, quando o eu é expulso de si mesmo por esta invasão interna, é colocar a sombra do objeto para fora, a fim de permitir que o sujeito se reabite. Não há modo de fazer isso sem que se interprete também o objeto. Não podemos mais ficar apenas na descrição dos processos do sujeito; é preciso pensar na interação entre os processos do sujeito e as respostas do ambiente. É, por exemplo, o que Green chamou de “mudança de paradigma”. Nosso primeiro paradigma era a vida pulsional e as defesas contra a vida pulsional. Agora, é preciso pensar de acordo com o paradigma pulsão-objeto; não apenas pensar o objeto, mas pensar o impacto da presença do objeto sobre o sujeito.

Vou contar uma pequena história grega: a história do Narciso e a história de uma ninfa que aparece para o Narciso, a ninfa Eco. A ninfa Eco é a primeira anoréxica da História! No início ainda não está muito claro, pode-se falar apenas que ela tem fragilidades narcísicas. Em particular, como uma adolescente, ela tem dificuldades com a sexualidade. Em compensação, ela fala muito bem; ela vai se especializar em contar histórias. Enquanto suas amigas vão voar no ar com o pai dos deuses, ela conta histórias à mulher do pai dos deuses para que esta mulher não descubra o que suas amigas estão fazendo; ela desvia a atenção da mulher do pai dos deuses. O problema é que a mulher do pai dos deuses percebe que Eco está contando histórias para desviar a sua atenção. Então, ela é punida; é punida de maneira que ela repita; porque ela não tem um desejo próprio, porque não é por sua conta que ela trabalha, ela é punida a não ter mais uma fala própria, punida a repetir a última palavra da fala dos outros. O problema de Eco vai se colocar quando ela se apaixona. Sua enfermidade torna difícil que ela tenha um desejo próprio e o formule. E aí ela vê o Narciso passar.

O Narciso não tem uma história simples, ele é nascido de um estupro; sua mãe passava por um rio e o rio a estuprou. A mãe está muito inquieta, ela faz algo que nunca se deve fazer, nunca! Ela vai ver Tirésias. E Tirésias lhe diz: “Narciso viverá se ele não se conhecer”. A mãe enlouquece, ela elimina todos os espelhos, ela se arranja de maneira que Narciso nunca possa se ver, se conhecer. Segundo drama de Narciso: ele é bonito; ele não sabe.

Narciso está passeando e Eco o vê passar. Ela se apaixona eternamente por Narciso, pois ele é muito bonito. É um drama! Como ela vai fazer para que ele saiba que ela o ama? A regra do jogo é que ela só pode repetir a última palavra da fala dos outros. Ela está escondida na floresta e fala com ele. Narciso está intrigado, ele pensa “quem fala comigo?” e começa a colocar a pergunta em voz alta. Num certo momento, ele diz: “Sai do seu esconderijo, vamos nos unir”. Em francês, a última parte da fala de Narciso (“vamos nos unir”) é unissons e uni son também quer dizer “um som”. Então, Narciso escuta Eco dizer unissons / uni son – “um som”.

É um drama! Eco finalmente tem um desejo próprio, em nome dela mesma. Ela endereça esse desejo à pessoa que ela ama, mas Narciso é muito doente. Ela sai do bosque, se aproxima dele; é a Eco com sua pulsão. Ela sai do bosque e Narciso lhe diz: “Tire as mãos de mim! Eu prefiro morrer a você me tocar”. Ela é bonitinha; se Narciso fosse um rapaz normal, se ele não tivesse nascido de um abuso, de um estupro, de algo muito complicado, ele diria para ela “você é bonitinha, você é interessante”, ou então diria “eu estou muito honrado, mas meu coração tem dona” – alguma coisa que não fosse tão agressiva quanto “Tire as mãos de mim! Eu prefiro morrer a você me tocar”. Há um élan no sentido do objeto e o objeto considera que este élan é perigoso.

O que acontece em seguida pode ser observado com as crianças: Eco abaixa a cabeça com vergonha; ela se retira para o bosque. Ela para de comer – anorexia. Ela para de beber. Seu corpo seca pouco a pouco. Só restam seus ossos que se misturam às pedras. Não existe mais nada dela, a não ser essa voz que repete a última palavra escutada.

Narciso, por sua vez, não fica melhor. Ele protegeu-se de Eco, mas a vida vai fazer com ele a mesma coisa que ele fez com Eco. Narciso aproxima-se do rio e se vê; porém, como ele não se conhece, ele não sabe que está se vendo. Ele se representa sem saber que está se representando. Como ele é muito bonito, apaixona-se por si mesmo. É um drama! A sombra do objeto cai sobre o eu; a imagem de Narciso é completamente bagunçada. Vai acontecer com ele o que aconteceu com Eco: todas as vezes que ele mergulha as mãos na água para tentar encontrar aquele que ele chama de “o belo estrangeiro”, a imagem se embaralha e o outro parece ir embora – “Tire as mãos de mim!”. Narciso fica colado em uma adesividade com essa situação, diante desse estrangeiro que não cessa de ser inatingível. E então ele vai se tornar a flor que nós chamamos de “narciso” e que cresce na beira dos rios.

Não podemos entender o que acontece com Eco sem integrar a reação de Narciso, pois ela tem vergonha quando Narciso transforma o seu movimento de amor em um movimento ameaçador – Narciso diz que prefere morrer! A vergonha de Eco resulta da reação do outro. Não podemos também compreender o destino de Narciso sem pensar no que aconteceu com sua mãe; sem pensar no que aconteceu com Tirésias; sem pensar que tirando dele todos os espelhos, ele estava impedido de se conhecer / reconhecer, o que colocava o seu narcisismo em impasse.

Quando temos Narciso no nosso divã, vamos tentar entender por que ele não se conhece. Vamos nos perguntar qual foi o espelho que ele não encontrou. Vamos tentar pensar a sua posição melancólica em relação à sombra do objeto estrangeiro que caiu sobre o seu eu. E quando temos Eco no divã, vamos tentar entender o que a resposta de Narciso ao seu élan amoroso causou nela. A cada vez, vamos integrar não apenas o movimento de Eco ou de Narciso, mas a dialética entre eles e o que se passa com o objeto.

[1] Conferência proferida na Reunião Científica “A psicanálise e a clínica contemporânea – Elasticidade e limite na clínica contemporânea: as relações entre psicanálise e psicoterapia”.

[2] Transcrição, tradução e edição realizadas por Bianca Bergamo Savietto.

[3] Caso “Juliana”.

[4] Vide “Comentários de René Roussillon”, terceiro capítulo da presente Seção I.

Teoria da simbolização