Comentários de René Roussillon
Comentários de René Roussillon[1][2]
É um grande prazer estar no Brasil e trocar com os colegas brasileiros. Sempre acho muito interessante que haja contato entre culturas psicanalíticas e maneiras diferentes de pensar a psicanálise. Como escuto os psicanalistas franceses há mais de trinta anos, tenho muito prazer em mudar e escutar os psicanalistas de outros lugares. E quando as proposições têm qualidade, não se trata apenas de uma mudança para mim: a psicanálise se enriquece.
Considero que a Universidade seja um lugar particular, com uma espécie de paradoxo, para falarmos da psicanálise, uma vez que nós não nos formamos psicanalistas na Universidade – o que poderia nos tentar a pensar que não seria pertinente falar da psicanálise na Universidade. Porém, ao contrário: como não existe uma formação, nós temos mais liberdade para falar e para pensar, pois não existem as restrições institucionais das Sociedades Psicanalíticas. E, na maneira como concebo as coisas na minha função universitária em Lyon, temos também um outro imperativo: tentar fazer o entrecruzamento de todos os modelos de pensamento – geralmente, nas Sociedades de Psicanálise há, grosso modo, um grande modelo que é imposto.
Aqui, podemos cruzar alguns modelos a propósito da clínica no caso apresentado[3]. Considerei todas as trocas e comentários anteriores de grande qualidade. Ao mesmo tempo, não fui convidado para dizer apenas que o trabalho feito está muito bom! Então, eu digo que está muito bom, mas vou tentar também dizer outras coisas. Tentarei propor caminhos ou modelos alternativos.
É verdade que a clínica do caso apresentado é uma clínica muito difícil; é uma clínica das situações limites, a qual tem como particularidade sacudir o enquadre psicanalítico tradicional e levar a situação analisante ao seu limite. Isso tem como consequência um certo número de impasses no que se refere à contratransferência. É como se tivesse alguma coisa da transferência que agisse sobre a própria situação analítica. É uma transferência sobre o analista, evidentemente, mas também sobre a situação analisante, que é vivida como ataque à situação analisante e, portanto, vivida como alguma coisa muito negativa pelo analista que precisa da situação analítica para trabalhar.
Todo o nosso esforço na minha Universidade, no meu grupo de pesquisa, consiste em questionar se é possível facilitar o trabalho de contratransferência, sabendo que há algo de inevitável nessa contratransferência: a elaboração pessoal, o fato de que essas análises nos obrigam a continuar as nossas análises. Nesse sentido, é muito rico para os analistas; é como se tivéssemos um ferrão que nos obrigasse a continuar as nossas análises. Nós fazemos a nossa análise pessoal por causa dos nossos problemas, das particularidades da nossa história, da nossa subjetividade pessoal. Essa clínica nos obriga a fazer um trabalho de análise que nos leva para outro lugar, na direção de algo que não teríamos tido espontaneamente vontade de trabalhar em análise, e considero isso extremamente rico para o meu trabalho pessoal, interno.
Será que podemos elaborar modelos de compreensão que facilitem o trabalho? O trabalho sobre a contratransferência é inevitável; mas, além disso, talvez se coloque a questão do modelo de inteligibilidade. Quero propor reflexões sobre modelos de inteligibilidade um pouco diferentes dos habituais. São modelos sobre os quais nós trabalhamos na Universidade de Lyon 2, na minha unidade de pesquisa, que envolvem todas as situações limites e extremas de subjetivação, todos os traumatismos que atingem o sentimento identitário do sujeito, como por exemplo: o autismo, a psicose, os sem-teto, a delinquência, os criminosos, os criminosos em série, a delinquência na adolescência, a toxicomania, a toxicomania grave… Todas as problemáticas clínicas nas quais o sujeito está ameaçado em seu sentimento identitário. Trata-se, portanto, de uma clínica das patologias do ser, que nos ensina enormemente sobre todas as formas de sofrimento narcísico. Falarei agora de alguns modelos que podem ser extraídos disso.
Em relação à oposição entre psicanálise e psicoterapia, vou deixar para falar disto amanhã. Talvez eu não tenha certeza de que tal oposição esteja bem formulada. Lembro a vocês que, para Freud, a psicanálise é uma psicoterapia.
Um ponto que talvez vá introduzir o que quero falar é o interesse em reler um certo número de textos de Freud à luz de todos os pós-freudianos. Os pós-freudianos são: Melanie Klein, Bion, Meltzer, Winnicott, Lacan, e também Green, toda a escola da psicanálise francesa, assim como Christopher Bollas, etc. Então, o que eu vou tentar fazer é retomar textos de Freud com uma leitura que não é a habitual, à luz de tudo que veio depois dele, para ver se não acabamos deixando de lado um certo número de coisas que ele já tinha enunciado.
Foi privilegiada, no caso apresentado, uma exposição centrada na questão da pulsão de morte, da destrutividade, o que remete diretamente ao artigo de Freud “Além do princípio de prazer”. Vou propor um salto no tempo, tentando examinar o que Freud diz no fim de sua vida, perto da morte. Nesse momento, ele estava em Londres; havia sido expulso pelos nazistas, e rascunha algumas pequenas notas, uma espécie de testamento. É como se ele nos enviasse mensagens, sobre as quais nós devemos continuar trabalhando. O que ele diz nessas notas? Ele retoma a questão da compulsão à repetição e traz alguma coisa totalmente nova. Não põe o acento sobre a destrutividade, e sim sobre dois elementos. Ele diz mais ou menos o seguinte (pois eu cito de cabeça): as experiências que mais se repetem são as experiências mais precoces, e elas se repetem devido à fragilidade da capacidade de síntese do sujeito. Esses dois enunciados são fundamentais para toda a clínica contemporânea.
Primeiramente, o que ele chama de experiência precoce? A gente sabe que, logo antes, ele tinha escrito o artigo “Construções em análise”, no qual ele aborda, em particular, a psicose e as experiências precoces. Ele diz mais ou menos (pois eu cito de cabeça): o delírio psicótico, a alucinação psicótica, referem-se a experiências anteriores ao aparecimento da linguagem verbal – isto é, mais ou menos aos dois primeiros anos da vida da criança. São essas as experiências que vão retornar, que vão se repetir. E o que Freud diz é que elas se repetem de maneira alucinatória, e que estas alucinações vêm se disfarçar no presente. Quer dizer que ele não faz uma oposição entre alucinação e percepção, mas uma superposição de processos alucinatórios e processos perceptivos.
Um pequeno parêntesis sobre a clínica do caso apresentado, a respeito da função do tóxico: será que aquilo que foi chamado de necessidade de anestesiamento não seria uma maneira de tentar calar uma ameaça de retorno alucinatório de experiências precoces? Certamente, é possível dizer que é para anestesiar as emoções. Entretanto, as emoções que estão em jogo não são as emoções no sentido habitual do termo; são os tsunamis do mundo emocional da primeira infância. É isso que ataca desde o interior, e que a paciente vai tentar transmitir à analista de uma maneira ou de outra. Mas, ao mesmo tempo, a paciente tem necessidade de se proteger porque isso ataca e desorganiza a sua vida.
As experiências precoces que não foram integradas retornam com características da própria época precoce, ou seja, a grande raiva da criança pequena, as angústias devastadoras da primeira infância, é isso que ataca o eu adulto. Talvez o alvo não seja a destrutividade, e sim criar lugar no aparelho psíquico. O sujeito então se defende do retorno vivido como destrutivo, talvez sentido como destrutividade, mas trata-se de uma necessidade de encontrar um lugar para ser integrado. Isso tem muita importância no que se refere à maneira como interpretamos tais manifestações.
Segundo aspecto daquilo que retorna de maneira alucinatória: as experiências precoces retornam com características da linguagem da época, isto é, não com características da linguagem verbal e sim com características da linguagem que existe nos dois primeiros anos da vida da criança – a linguagem da mímica, a linguagem gestual, postural, do afeto, da sensorialidade, do ato… São características que vemos muitas vezes na clínica do caso apresentado. A paciente tenta expressar uma série de coisas por meio de linguagens que não são uma linguagem verbal.
Isso abre uma grande questão sobre a concepção da associatividade do método. O peso do pensamento de um certo número de lacanianos – não de Lacan – foi dizer que a associatividade é verbal, o que não é a posição de Freud e eu nem acho que seja a posição de Lacan. Quando Lacan diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, ele não diz que o inconsciente é estruturado pela linguagem verbal. Ele diz que o campo representativo do sujeito humano se organiza como uma linguagem, tudo podendo ser entendido como buscando se organizar à maneira de uma linguagem. Logo, nós precisamos de uma compreensão da associatividade que integre não apenas a associatividade verbal, mas também a associatividade dos atos, dos gestos, das mímicas, das posturas…
Freud possui belas fórmulas para falar disso. Ele diz que o corpo, sob todas as suas formas, tem sua palavra a dizer; é uma maneira de dizer que se trata de linguagem. Em outro momento, no primeiro texto dos “Estudos sobre a histeria”, Freud diz que isso vem se misturar à conversa. Toda a sintomatologia corporal, mimo-gesto-postural da paciente do caso apresentado se mistura à conversa psicanalítica. Aqui talvez haja um debate em torno da questão de saber se trata-se de não associatividade ou de uma outra forma de associatividade.
Vou continuar sobre os textos de Freud. Quando ele faz suas observações sobre as experiências arcaicas, sobre o retorno alucinatório, ele faz uma proposta de modificação da inflexão do trabalho psicanalítico. Até então ele estava centrado no desejo do sujeito, na tentativa de tomada de consciência dos elementos recalcados, nas resistências do sujeito em reconhecer aquilo que tem a ver com seu desejo inconsciente. Porém, Freud vem a colocar que, em situações limites e extremas, isso é inútil. É preciso fundar o tratamento sobre o fato de reconhecer o núcleo de verdade histórica contido no interior da manifestação sintomática. Isso muda muita coisa! Não estamos mais em busca do desejo do sujeito, nós estamos em busca daquilo que ele tenta contar, do núcleo de verdade, de alguma coisa essencial em sua história. Quando nós prestamos atenção na importância do que Freud coloca nesse momento, tiramos conclusões que não são frequentes.
Se nós quiséssemos ter uma compreensão melhor da clínica em jogo na nossa pesquisa em Lyon, era preciso aumentar o nosso conhecimento acerca dos dois primeiros anos de vida do sujeito; trabalhar toda a clínica precoce, todo o material do qual dispúnhamos, todas as pesquisas em neurociências, tudo que pudesse trazer elementos para aumentar nosso conhecimento sobre aquilo que se passa na primeira infância. Nesse momento, tivemos algumas surpresas. Seria muito demorado contar todas as surpresas, mas gostaria de contar uma delas porque dialoga com o que Luís Claudio Figueiredo falou e tem muita importância em relação ao caso apresentado: o problema maior na relação do bebê com sua mãe e da mãe com seu bebê é tanto se ligar ao objeto quanto se diferenciar dele.
Isso abre uma questão acerca da problemática da presença, da problemática da influência de um sujeito sobre outro sujeito. Para além dos elementos que tradicionalmente possuímos sobre uma teoria da ausência, nós também devemos tentar pensar numa teoria sobre modelos de presença. A mãe da paciente do caso apresentado está na casa da paciente, está permanentemente presente, e todo o problema da analista é como tornar essa mãe ausente, como conseguir encontrar um espaço psíquico não invadido. A paciente é invadida do interior pelas experiências arcaicas que não foram suficientemente integradas e do exterior pela presença ‘assediadora’ de sua mãe; ela está no meio do fogo cruzado. Se ela tenta se defender dessa presença ‘assediante’, ela é confrontada com uma outra angústia, que é a angústia de solidão e de abandono radical. Trata-se de uma característica que encontramos em todas as patologias do narcisismo, uma dupla ameaça no encontro com os objetos: se eles estão muito próximos, são intrusivos; se eles distanciam-se muito, estão abandonando.
Vou fazer um parêntesis sobre o trabalho clínico. Em primeiro lugar, toda interpretação é intrusiva e, em segundo lugar, toda não interpretação é ‘abandonante’. É a questão da transferência paradoxal, e temos aqui toda a dificuldade do trabalho clínico. Descobrimos uma maneira de sair desse impasse desenvolvendo algumas formas de jogo. Tentei desenvolver formas adaptadas do jogo de esconde-esconde. Todo o discurso do paciente, como Bianca Savietto colocou muito bem, tem um valor de proteção contra a intrusão do analista; mas a proteção do sujeito faz com que ele esteja ao mesmo tempo perdido. Não é uma clínica do objeto perdido, é uma clínica do sujeito perdido. Ele está perdido na própria intensidade de suas defesas, ele não sabe mais o que sente, ele não sabe mais nem onde está, ele está em algum lugar fora dele mesmo. Então, vamos procurá-lo. Talvez o trabalho clínico seja ir em busca dele. Ir em busca dele não quer dizer encontrá-lo, quer dizer comunicá-lo que se está à procura dele. “Você me disse isso, depois me disse aquilo, eu me pergunto se isso quer dizer aquilo. Mas eu não sou muito esperto, eu não consigo descobrir” – na medida em que estou à procura.
Vocês sabem brincar de esconde-esconde com as crianças de menos de dois anos? Eles não estão bem escondidos, eles estão excitados porque é terrível, e nós sabemos de cara onde eles estão. Mas se vamos procurá-los onde eles estão, não tem brincadeira; então, não fazemos isso. A gente vai para o outro lado, a gente fala alto “será que o fulano está escondido ali atrás?”, “será que ‘Juliana’ está atrás da pilastra?”, a gente escuta a criança que ri, “Está frio ou está quente?”… A brincadeira / o jogo consiste em se aproximar progressivamente. Em primeiro lugar, eu não abandono porque eu procuro e, em segundo lugar, eu não invado porque eu não acho! Na boa brincadeira / no bom jogo, a gente se aproxima e a criança aparece rindo muito. Quando as crianças têm quatro, cinco anos, elas permanecem escondidas e é necessário realmente achá-las, mas não com as crianças nos dois primeiros anos.
Logo, esse é um modelo possível de trabalho. Não fazemos, de maneira alguma, um trabalho de cunho interpretativo. Desenvolvemos uma modalidade de jogo que busca responder à dupla angústia – de abandono e de invasão / intrusão. A psicanálise aqui é representação de um processo de simbolização.
Vou voltar à história de Freud. Em 1920, ele escreve “Além do princípio de prazer” e introduz a pulsão de morte, a compulsão à repetição. Além do princípio de prazer… O que ele está fazendo nesse texto? A resposta vem no ano seguinte, em 1921, com “Psicologia de grupo e a análise do ego”. Ele começa dizendo que havia um problema sobre o qual era necessário pensar, a saber, a influência de um sujeito sobre outro sujeito, e dá continuidade abordando toda a questão da identificação. Eu não vou falar de toda a história e todo o pensamento de Freud, mas em 1915 ele se propôs a fazer um trabalho de síntese de todo o pensamento psicanalítico; porém, ele para. Ele para após ter escrito “Luto e melancolia”. No que ele esbarrou em tal texto que fez com que ele não pudesse mais continuar? Se eu tivesse algumas horas, eu analisaria esse texto e os textos posteriores a ele, para mostrar o seguinte: em “Luto e melancolia”, ele diz que o luto é quando o objeto é perdido e a melancolia não é exatamente isso… Não há exatamente uma perda do objeto na melancolia, e é difícil fazer o luto de um objeto que não foi perdido. Se vocês lerem bem o texto, verão que Freud diz que o objeto da melancolia foi decepcionante. A melancolia é a história da decepção precoce. Freud diz: a sombra do objeto cai sobre o eu… E ele não avança. Essa formulação é estranha; não é o objeto que cai sobre o eu, é a sua sombra. E o que se torna a sombra do objeto quando ela cai sobre o eu? O que se torna, então, a influência do objeto quando sua sombra cai sobre o eu?
É aí que precisamos de Winnicott, de Bion e de dos pós-freudianos. Bianca Savietto e Luís Claudio Figueiredo falaram sobre função continente – função alfa, nos termos de Bion. O que é precisamente a função alfa? Winnicott diz que o rosto da mãe funciona como um espelho. Isso quer dizer que aquilo que contém é o que o objeto reflete ao sujeito do próprio sujeito. O que permite ao sujeito se encontrar é o reflexo dele mesmo que enviamos para ele, o que mostramos para ele com o nosso rosto, a maneira como o seguramos, o handling, o holding, a maneira como apresentamos os objetos para ele, nos interessemos pelo seu desenvolvimento, etc.
A sombra do objeto é aquilo que o objeto não enviou ao sujeito dele mesmo, é aquilo que o objeto não esclareceu. O que acontece num caso desses? O que se passa quando um certo número de coisas que acontecem com o bebê e com a pequena criança nunca são refletidas para eles, quando eles são maltratados, quando existe uma espécie de inversão da relação – como é o caso da paciente de Bianca Savietto, em que é a filha que toma conta da mãe? O que acontece é que o sujeito tem nele toda uma série de potencialidades que não se desenvolvem, e isso provoca um sofrimento que talvez seja um dos sofrimentos fundamentais, primitivos, uma vez que o sujeito está completamente perdido em relação ao que ele vive. Se quisermos colocar em termos bionianos: a mãe não exerce uma função alfa, mas ela exerce uma função ômega; não é uma função de desintoxicação e sim de intoxicação.
Farei agora algumas proposições acerca das problemáticas narcísicas. Dois núcleos. Sofrimentos que provocam vivências de agonia, vivências de intoxicação interna, diante das quais o sujeito se retira de si mesmo numa linhagem de processos de tipo autístico. Logo, o primeiro núcleo das problemáticas narcísicas é o núcleo autístico. Então, há espaços vazios no interior de si, e há um objeto intrusivo, há a sombra do objeto que cai sobre o eu e que vem invadir os espaços deixados desertos pelo retraimento do sujeito. O segundo núcleo é o melancólico. Nesses quadros clínicos estamos diante de um duplo núcleo: o sujeito está retirado de si mesmo e invadido pelo objeto.
Um pouco mais tarde, quando o sujeito tenta se reabitar, todas as tentativas para tornar-se o centro de si mesmo encontram a sombra do objeto, incorporado, e o assédio por esta sombra do objeto. É preciso então tentar anestesiar, tentar calar. Isso também faz parte do quadro clínico da paciente de Bianca Savietto.
Na nossa escuta, quando escutamos o paciente, não sabemos exatamente quem nós estamos escutando. Será que estamos escutando a sombra de seus objetos internos? Será que são essas influências externas que tomaram conta dele, que possuem o sujeito desde o interior? Nas crises, nas quais o sujeito está como que possuído, há toda uma série de coisas que esses pacientes fazem o analista viver, e que não são exatamente coisas que o sujeito faz o analista viver e sim coisas que a sombra do objeto incorporado faz o analista viver. Quando escutamos bem, percebemos que, nesses casos, a voz do paciente está um pouco diferente da voz habitual, eles estão possuídos pela voz do objeto; as mímicas, os gestos e as posturas também são mímicas, gestos e posturas incorporados.
Então onde está o sujeito quando é o objeto que ocupa todo lugar? O sujeito está refugiado no analista. O paciente nos faz viver formas disfarçadas daquilo que o objeto o fez viver. É o que chamo de transferência por inversão: nós somos colocados no lugar do sujeito e ele está no lugar do seu objeto. Isso transforma todos os dados da escuta. Não podemos escutar o sujeito como se ele fosse simplesmente o portador de seus próprios processos, é preciso também pensar que ele nos traz os processos com os quais ele foi confrontado e que vêm do objeto.
Terminarei sublinhando que a característica da transferência é, portanto, ser uma transferência clivada. De um lado, o paciente encarna seu objeto e nos faz viver o que ele viveu sob uma modalidade de inversão, nos faz viver ativamente o que ele viveu passivamente. E quando nós conseguimos compreender isso e estamos super contentes, pensando ter encontrado a solução, descobrimos que existe um segundo movimento, clivado do primeiro. Esse segundo movimento consiste em uma modalidade tradicional de transferência, de acordo com o modelo do deslocamento; quer dizer que nós mesmos somos, neste momento, também o objeto perseguidor. Quando eu interpreto a inversão, eu me deparo com o deslocamento; quando eu interpreto o deslocamento, eu me deparo com a inversão; se eu tento interpretar os dois ao mesmo tempo, eu enlouqueço o paciente e enlouqueço a mim mesmo!
Sendo assim, é possível enxergarmos porque o trabalho é tão difícil. Ele é difícil porque precisamos lidar com esses dois movimentos antagonistas ao mesmo tempo. Talvez a solução seja parar de interpretar e retornar ao que Freud diz em “Construções em análise”. Eu lembro a vocês o que ele diz: a interpretação não é um bom termo para descrever o trabalho psicanalítico. Precisamos escutar o que ele está dizendo, pois se continuamos afirmando que interpretamos porque o trabalho psicanalítico é a interpretação, é como se Freud não tivesse dito nada. Porém, Freud diz que o termo interpretação não é muito bom, e ele tem razão! Porque interpretar é algo que fazemos o tempo inteiro na vida cotidiana: uma mulher sorri, eu interpreto; alguém faz uma cara feia para mim, eu interpreto; alguém diz algo e eu não sei se entendi muito bem, eu interpreto… A linguagem humana é eminentemente ambígua e nós somos obrigados a interpretar. Logo, interpretar não é específico do analista; trata-se de uma especificidade do ser humano confrontado com a relação enigmática com o outro.
Quando Freud dá um exemplo do que ele chama de trabalho de construção, é possível dizermos “isso é específico!”. Vou falar sobre tal exemplo, que é muito surpreendente: até uma certa idade você se considerou como proprietário exclusivo da sua mãe, até seu irmão nascer; o seu pai ganhou um novo sentido para você, etc. Uma frase como essa, a gente nunca diz na vida cotidiana; estamos diante de algo que só se pode dizer numa sessão de análise. Se eu digo isso ao porteiro, vocês podem imaginar?! Trata-se, então, de uma mudança muito profunda da nossa concepção do trabalho analítico.
Vou encerrar. Mas gostaria de colocar ainda que isso tudo quer dizer que nós temos a chance de não nos tornarmos psicanalistas deprimidos no século XXI; que ainda é necessário reinventarmos uma grande parte da psicanálise. Deste modo, não somos obrigados a ficar repetindo tudo o que os outros já disseram no século XX. Obrigado.
[1] Comentários ao texto “Elasticidade e limite na clínica da drogadicção: por um pensamento clínico complexo” (segundo capítulo da presente Seção I) e às falas de Octavio Souza, Bianca Bergamo Savietto e Luís Claudio Figueiredo na conferência “Por um pensamento clínico complexo” – nesta conferência foram sucintamente apresentadas as ideias desenvolvidas no texto mencionado, assim como aquelas desenvolvidas no texto “As relações entre psicanálise e psicoterapia e a posição do analista” (primeiro capítulo da presente Seção I).
[2] Transcrição, tradução e edição realizadas por Bianca Bergamo Savietto.
[3] Caso “Juliana”.